Introdução
O objetivo deste texto é lançar um olhar no sentido de apreender detalhes significativos da trajetória de vida do General Napoleão Bonaparte, que culmina na construção de um mito enraizado no imaginário ocidental. A partir das informações encontradas nas obras utilizadas nesse trabalho, é possível um vislumbre do seu lado humano e temporal contrastado com os tantos “napoleões” pintados, descritos, cantados. A aura imortal tecida em torno do Grande General fez surgir o Herói, como própria materialização do desejo inconsciente que brotava no coração dos homens daquele tempo: um desejo que possuía uma forma, e Napoleão coube nela.
A bibliografia que serviu de base para este trabalho consiste em três obras importantes sobre Napoleão.
A famosa biografia literária, “Napoleão”, de Alexandre Dumas, uma obra de cunho romântico onde o autor expõe suas impressões, revelando uma profunda admiração e grande orgulho pelo personagem de sua obra, conduzindo o leitor pelo tempo de forma mágica, enriquecendo com muitos detalhes a suas descrições a respeito da época em que a História acontecia. Dumas, filho de um general de Napoleão, produziu sua obra no contexto da era napoleônica, retrabalhando o Memorial de Santa Helena, escrevendo uma peça teatral fracassada sobre o tema, como também a biografia utilizada nesse trabalho.
“Napoleão”, de Thierry Lentz, apresenta cronologicamente a atuação de Napoleão na História, e nos sugere uma reflexão acerca da biografia desse personagem, pois sua atuação no mundo excede a aventura individual (Lentz, p.8). Numa postura de distanciamento psicológico do tema, sem o romantismo comum a outros autores, Lentz conduz seu texto de forma a propor uma discussão no tempo presente, a partir da visão contemporânea dos fatos, convidando-nos a uma nova análise dessa importante figura.
Por fim, Sthendal, na verdade Henri Beyle, autor de “Memories sur Napoleón”, título original do livro “Napoleão” consultado para complementar esse trabalho. Simpatizante dos miseráveis, comenta em 1811 a respeito da “energia”, termo recorrente ao longo da obra, gerada pela “luta contra as reais necessidades”, referindo-se aos mais pobres (Sthendal, p. 6), reconhecendo, entretanto, que seu prazer dependia dos bons contatos que mantinha com a sociedade requintada da época, sendo um admirador de arte e das boas maneiras, coisas inacessíveis à classe baixa onde, porém, encontrava o poder gerado por esta classe movida família.
Estas três obras, ao se articularem, contextualizam a época dos fatos narrados, trazendo à luz o pano de fundo onde se sucedem os acontecimentos que forjaram o mito de Napoleão, num momento em que as estruturas da velha Europa estão abaladas, contribuindo desse modo para a alteração da ordem das coisas, marcando o início da nova trajetória da humanidade.
A Construção do Mito
É neste cenário que nasce, em 15 de Agosto de 1769, em Ajácio, cidade que se tornara francesa havia pouco tempo, um garoto que seria um grande homem das armas, amado e odiado com a mesma intensidade em diferentes momentos da História. Ao se fazer grande, conquistou o mundo, intervindo e influenciando ao final da época feudal, na estruturação de uma nobreza popular na Europa. Figura de primeira grandeza na História, nasce no final do século XVIII; conquista o XIX, ao vencer tantas batalhas quase tanto o quanto participou delas, ressurgindo no XX, quando olhos curiosos se voltam ao passado, ainda atraídos pelo espírito napoleônico, na busca de entender e explicar o mito Napoleão Bonaparte.
Inspirado pela figura de Pascal Paoli, um político guerreiro, personagem que ressoava na Córsega daqueles tempos, que mesmo vencida se sentia orgulhosa e honrada em ver o nome de seu herói ecoando por toda Europa. Paoli serviu-lhe de referência na infância, e representou também em seu imaginário um modelo seguido por Napoleão ao longo de seu caminho. Teria também em seus lábios, aos vinte e nove anos, as máximas de Plutarco e Tito Lívio, que seriam para ele seu catecismo. Sthendal faz uma interessante citação: “Assim, por uma estranha felicidade, que os filhos dos reis não conseguiram ter, nada de mesquinho, nada de mediocremente pretensioso agita os seres que rodeiam o berço de Napoleão” (Sthendal, p. 31). Uma alusão a uma inspiração superior no simples convívio com o general? Este autor trabalha com um conceito um tanto sagrado em relação ao personagem, referindo-se ao nascimento do mito. Tudo conspirava a favor de um povo levado às últimas conseqüências, vivenciando momentos de crueldade, o poder atuando em seu limite, a guerra, as trevas e totalmente esquecidos por Deus.
Em “Napoleão-uma biografia literária” - obra de Alexandre Dumas veremos Napoleão personagem de um romance. Suas falas e idéias são expostas pelo autor de forma estilizada, sua imagem transcende o tempo, como grande figura na galeria dos imortais, em toda sua glória. O passado napoleônico, segundo Dumas, sugere imagens exaltando a glória e vitórias nas batalhas. Bem sabemos que a glória na vida de Napoleão é apenas uma das faces retratadas nas obras que inspirou, ganhando maior ênfase nos registros, capazes de influenciar na impressão das pessoas, o que torna compreensível a admiração, o respeito e o fascínio exercido pelo o herói, muito mais arquétipo que general, ao longo do tempo até os dias de hoje. Napoleão é o resultado de uma construção complexa de personalidade, que ao ser vista superficialmente, nada ou pouco tem a dizer. É no aprofundamento da observação que se torna possível vislumbrar os momentos alternados de guerra e paz. No imaginário de Napoleão, uma existia em favor da outra, e ele, como demonstra o texto de Dumas (p. 40), articulava muito bem em ambas. Dumas produziu outras obras recorrendo a esse pano de fundo que conhecia bem, pois viveu naquele contexto, e muito do que sabia era resultado de suas minuciosas observações, demonstradas em sua exposição da história.
“A Europa antes da Revolução Francesa tinha seus limites ditados pela rivalidade entre Áustria e a França, definidos pelos tratados de Westfália (1648) e de Utrecht (1713). Durante o século XVIII, essas hostilidades prosseguiram, tornando-se mais acirradas e complexas com o surgimento de duas grandes potências, a Prússia e a Rússia, e a crescente e obstinada oposição da arquiinimiga Inglaterra.” (Dumas, pp. 30-31)
É neste cenário que a imagem mitológica de Bonaparte começa a ser cultivada, parte dela construída por suas próprias mãos, dando claro indicativo de que, antes de tudo, tinha a si próprio em alto conceito. Trabalhou na construção de seu mito, um trabalho que sugere o culto a uma imagem, uma projeção, com poder sobre a vida e a morte, enaltecendo seus feitos, manipulando situações de modo a torná-las favoráveis à construção de uma imagem forte nas diversas esferas, sabendo muito bem atuar dentro delas, alternando sua postura política a favor de si mesmo, demonstrando um pleno controle sobre o trabalho que realizava: a guerra. Percebe-se isso inclusive em suas memórias ditadas por ele mesmo. (Lentz, p. 32)
“Napoleão”, de Thierry Lentz, faz uma análise a partir de um olhar, e assim sendo, a mesma imagem pode ser vista de várias formas. Lentz, em seu texto, fala sobre a ideologia iluminista explícita nos textos que Napoleão escreveu. Em seu tempo ocioso de caserna ou exílio, leu muito (Lentz, p. 30) e produziu alguns escritos, tentando os mais diversos gêneros, do romance aos ensaios filosóficos, seus contos e estudos jurídicos. Foi seduzido pelo anticlericalismo de Voltaire; de Montesquieu, reteve a influência do clima e das culturas sobre as leis, e a impossibilidade de aplicar a democracia para governar um povo tão numeroso como a França; de Rousseau, pensador que foi o seu preferido, a ponto de declarar: “Oh Rousseau! Por que você só viveu sessenta anos? Para o bem da virtude, você deveria ter sido imortal!”. Em 1802, pronunciou a oração fúnebre de suas ações passadas, declarou sobre Rousseau: “Teria sido melhor para a tranqüilidade da França se este homem nunca tivesse existido!” Deste herdou a teoria do contrato social. Encontramos também “O Príncipe” de Maquiavel: “... não há coisa mais difícil de fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou mais perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem, porque quem o é tem pôr inimigos todos aqueles que se beneficiam com a antiga ordem, e como tímidos defensores todos aqueles a quem as novas instituições beneficiam.” A “energia” a serviço da conservação do poder. (Lentz, PP. 31-32).
Ao articular boas amizades e contatos, situando-se do “lado bom” (Lentz, p.34), Napoleão participou do encaminhamento do período pós-Revolução. Em Fevereiro de 1789, participa da esquerda política, fazendo parte do Clube dos Jacobinos de Auxonne (Fevereiro de 1791). Entusiasmado e tocado pelo espírito republicano, chegou a acreditar realmente na possibilidade de um mundo idealizado por filósofos e realizado pelo povo, não mais a ação violenta da multidão, a qual desprezava e talvez receasse. Algum tempo depois se decepcionaria com a traição que revelaria o verdadeiro caráter daqueles a quem apoiou e que o cercavam.
Aos 24 anos, era apenas capitão, não tendo reconhecida sua promoção a tenente-coronel dos corsos. Em 1793, foi requisitado a comparecer em Toulon, que tinha sido entregue aos ingleses pelos federalistas e estava sitiada pelo exercito republicano. Com mais uma de suas brilhantes estratégias, tomou Toulon de assalto, e tirou o atraso da sua ascendência. Foi nomeado general de brigada. Após o tempo ocioso entre literaturas e patriotismo insular, passa a dedicar-se à sua carreira militar, quando então conhece o sucesso.
Em Sthendal, encontramos um autor refinado na análise dos sentimentos de seus personagens, preferindo utilizar as próprias palavras de Napoleão para contar sua história. Dono de um estilo deliberadamente seco, porém encantado pelo Imperador, cultiva uma difícil paixão pelo herói, como consta em seu livro, devido aos paradoxos que a história napoleônica suscita. Questiona os escritos sobre o general que visam depreciá-lo, dizendo a respeito dos escritores que porventura tivessem testemunhado as ações do general, por exemplo, ao entrar em Berlim, ou em Wagram, ou ainda marchando com o bastão na mão na retirada da Rússia: ”...se tiver a coragem de dizer a verdade a respeito do tudo, mesmo desfavorável ao herói, terá algum mérito”.
Explicita de maneira clara a França como sendo consumida pela corrupção material e moral, como tantos outros autores divulgaram. Aponta os antagonismos das classes conduzindo a trajetória do general, em todo caminho percorrido pelo futuro Imperador. Através dos relatos do autor, temos uma retrospectiva sobre Bonaparte, que desliza para fora do horizonte glorioso, no desterro em Santa Helena. Fala-nos da infância de Napoleão, de sua severa educação italiana, aprendendo sobre a necessidade, sem ter sido jamais cercado “por essas afeições francesas que despertam e cultivam a vaidade de nossas crianças e fazem delas brinquedos adoráveis aos seis anos e, aos dezoito, homenzinhos de pouco vigor” (Sthendal, p. 31). Napoleão se descreve como uma criança obstinada e curiosa.
Exercendo um domínio quase natural, pela razão ou pela força, a partir dos resultados alcançados por ele, podemos afirmar que Napoleão, orientando-se por suas próprias diretrizes, representa o verdadeiro espírito que permeava sua época.
Sua Morte
Entre o povo e o rei, um filho da guerra e seu domínio pela força. O poder em seu limite.
Após ser vencido em Waterloo (1815), embarca no Northumberland, navio inglês que o levou para a ilha da Santa Helena, onde passaria seis longos anos na companhia de Bertrand, Montholon e Gourgaud, generais que optaram em viver no exílio com ele; um nobre, Emmanuel de Las Cases; além de mais duas mulheres, esposas dos generais, e alguns criados. Destronado e desterrado, ditou suas memórias para Las Cases, o famoso Memorial de Santa Helena. Já não era mais aquele homem altivo que os campos de batalha conheceram, a degradação de sua saúde, a partir de estudos, hoje sabemos que Bonaparte tinha câncer no estômago, o qual era tratado com fórmulas que continham arsênico, muito comum na época. A princípio, imaginou-se um envenenamento lento planejado, mas surge a hipótese da medicação: “Porém, hoje em dia, já se sabe que Napoleão tinha câncer no estômago e, provavelmente, foi tratado com um remédio da época que, possuía, em sua constituição, arsênio e solventes. Como tomou esse remédio por um período grande e constantemente, acredita-se que o arsênio acumulou-se em seu organismo. Ele está sepultado no Hôtel des Invalides em Paris.”
Aquela ilha, situada na imensidão do Atlântico Sul, teria condenado ao esquecimento o exílio, não fosse por seus companheiros, que voluntariamente estiveram com ele até o final de sua vida. Eles publicaram os relatos colhidos naqueles anos, que revelavam impressões de Bonaparte sobre os tantos assuntos que o interessavam. Declarou seu arrependimento ao dizer a verdade em alguns momentos de sua trajetória. Não ignorou a força o povo, e foi um sábio utilizador da palavra, partindo do princípio diplomático, usando como arma sua inteligência e o domínio da palavra, que conduzia tão bem quanto uma batalha.
Napoleão projetou seu o futuro, e agiu do mesmo modo em relação à morte próxima. Recomendou ao Dr. Antonmarch o exame anatômico de seu corpo, principalmente do estômago. Outros médicos que consultara haviam lhe dito que sua doença seria hereditária, e Napoleão pede ao seu médico que faça as devidas comparações e salve seu filho dessa possível herança legada á ele. Frisou também que apenas o Dr. Arnot poderia tocar em seu corpo após sua morte, e de forma alguma um inglês o faria. Fez um testamento minucioso, dirigido a seu filho, familiares e amigos. Sentia a aproximação da morte, e aconselhou sobre a conduta que deveriam adotar seus companheiros que haviam estado com ele no decorrer da vida, no exílio, e agora em seu leito de morte, numa demonstração de fidelidade á sua memória, que não deveria ser ferida em hipótese alguma. Afirma ter Infundido seus princípios em suas leis e seus atos, sendo todos consagrados. Não escapando aos reveses, lamenta a França ter sido privada das instituições liberais que lhe havia destinado. Ainda sobre a França: “Ela me julga com indulgencia, sabe de minhas intenções, zela pelo meu nome, minhas vitórias: imitem-na. Sejam fieis as opiniões que defenderam, à glória que conquistamos. Afora isso restam apenas vergonha e confusão...” (Dumas, pg. 196)
Conclusão
Existem inúmeras possibilidades de abordagem á esse tema a partir das obras aqui consultadas. Alguns relatos de Napoleão trazem nuances que revelam um personagem mais próximo da filosofia e religião, um tanto distante daquele que é apresentado na escola e nos livros didáticos. É uma história que não se esgota em si mesma, um retrato incompleto ainda em construção e só será concluído pelo tempo.
Seria a morte realmente o fim? A incorporação de caracteres e virtudes divinas, de libertador, castigador, tirano, deus da guerra, entre outras, conferiram imortalidade à sua imagem. O Grande General ao externar em suas posturas disciplinadas, a capacidade de idealizar, realizar e executar estrategicamente seus planos foi bem sucedido em muitos momentos em seu caminho. Sua história fincou-se na História como marco no tempo de trevas e luzes. Um mito alimentado pela “energia” do povo.
Os autores aqui consultados reuniram informações importantes para a busca historiográfica, que auxilia e dá parâmetros necessários á uma tentativa de reconstituição do passado. Napoleão Bonaparte se tornou imortal, e é impossível dissociar essa idéia do personagem, pois o tema ainda desperta curiosidade e admiração de qualquer um que se proponha a estudar a História das Revoluções.
Não se sabe ao certo se a Revolução Francesa termina com Napoleão ou se seus ecos seriam ouvidos ainda mais longe. De qualquer forma, Napoleão é um divisor de águas na história do Ocidente, sendo possível o desdobramento de sua história tanto para antes de seu tempo, como para depois dele. De qualquer modo que se olhe, é impossível não se envolver com o poder que emana dessa figura construída pela história. Entre o Rei e o Povo, a luz e a sombra do Imperador.
Bibliografia
· DUMAS, Alexandre (1802-1870) Napoleão: uma biografia literária; tradução, apresentação e notas: André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004
· LENTZ, Thierry; 1959-“Napoleão”, tradução Constancia Egrejas – São Paulo: Ed. UNESP, 2008.
· STHENDAL, Marie-Henri Beyle; "Napoleão", do original: “Memories sur Napoleón”: Boitempo Editorial, 2002
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