(Gruzinski, Serge)
A mistura entre esses dois mundos se dá além do conceito biológico, interpenetrando o mundo mental dos envolvidos e criando a partir de então, a junção, ou melhor, uma justaposição, de cultura, religião, linguagem impregnando, assim, os ameríndios da segunda metade do século XVI dos elementos europeus e vice - versa.
Aby Warburg, um dos pioneiros da historia da arte observou, durante uma missa um mural feito por indígenas e comentou: “Durante a missa, fiquei impressionado com o fato de que as paredes estavam cobertas de símbolos pagãos.” (Gruzinski, Serge; O pensamento mestiço, pp13), fez algumas fotos também onde é possível observar a influencia européia na vestimenta de algumas índias, as policromias no altar e nas imagens dos santos diante dos quais estas rezavam. Descobre um vinculo secreto entre essa cultura primitiva e a civilização do Renascimento. É possível, a partir daí, realizar um melhor estudo dando uma base mais ampla ao modo de pensar dos renascentistas.
Tal qual ocorreu em toda América, a chegada dos homens do renascimento que enxergavam no índio uma folha em branco, na qual poderia e deveria ser impressas os conceitos da Europa Ranascentista, e estes impuseram, a força, sua crença e os habitantes da mesoamérica tiveram de desenvolver estratégias de sobrevivência, resistência e mesmo de convívio com a nova realidade que se apresentava. O cenário de desestruturação foi muito além do que a simples visão poderia perceber. Rompidos os ciclos naturais a que estavam acostumados os índios, surge a fome, a guerra e as epidemias retratando os cavaleiros do apocalipse percorrendo a terra espalhando suas pragas. Com mensagens tiradas do Êxodo e do Apocalipse, Motolinia, um monge católico, escreveu:
“Deus castigou esta terra com dez pragas muito cruéis por causa da dureza e obstinação de seus moradores, e por reterem prisioneiras as filhas de Sião, isto é, suas próprias almas sob o jugo do Faraó {...}” (Motolinía, o Pobre; Cidade do México, 1520, apud O Pensamento Mestiço, PP 64.)
O próprio monge não se apega definitivamente a essa explicação providencialista e a partir da terceira praga reintroduz as responsabilidades dos homens dentro de todo esse processo, tanto os espanhóis como os índios. Uma instabilidade que domina todo o contexto social da colonização.
Esse sofrimento durou muito tempo e seguiram-se outras catástrofes. Assim a formação da identidade mestiça se dá num complexo dinâmico, no qual as pessoas envolvidas na época não teriam condições de se dar conta, visto que não se tinha noção da proporção do eco que essa mestiçagem faria através dos séculos, até se formar da maneira como conhecemos hoje.
Um povo que vivia em contato com o sagrado, isolados do resto do mundo, viu suas mulheres serem profanadas, seus deuses aniquilados, dando lugar ao novo demônio trazido nas caravelas, e assistiram assim o ruir de sua civilização e o aparecimento de outra, que dividiu opiniões. Alguns colaboraram com os invasores caminhando entre os blocos que a história já localizou, outros dissimularam, e muitos que ofereceram maior resistência, foram mortos.
Num nível mais sutil e menos doloroso, os vencedores também tiveram suas consciências alteradas por esta experiência, pois a troca, efetivamente ocorreu. A mistura se torna complexa, pois havia diversas pequenas culturas na América, e os invasores também eram diferentes pessoas vindas de diversos lugares, A história da formação da península foi feita pelas relações entre os três mundos conhecidos, cristão, judeu e mulçumano, o que nos permite concluir que o estranhamento foi generalizado. Naquele momento um mundo novo se abria e gestava uma nova identidade intermediária.
Gruzinski usa o termo mestiçagem para definir um conceito sobre a identidade intermediária que se formava, e o termo hibridação para as misturas que aconteceram dentro da América. Isto se inscreve tanto dentro de uma globalização, termo não tão recente como afirma o autor, como nas margens menos vigiadas desse processo. Pensar as misturas nos leva a perceber que mesmo as misturas mais simples, como as de fluidos, na verdade não tem nada de simplicidade. Que espécie de alquimia pode ser capaz de juntar dois universos incompatíveis de crenças e costumes? O termo correto talvez seja a sobreposição de culturas, definição que o autor alerta para que tenhamos certa desconfiança, pois esta pode se apresentar como um conceito ocidental capaz de instalar uma desordem em conjuntos estruturados e tido como autênticos, por uma visão das coisas decorrentes de maneiras de pensar profundamente arraigadas em nosso ser (Gruzinski, Serge; O pensamento mestiço, pp52/54). Mas isso não explica tudo. É importante compreender o que provocou o fenômeno, saindo do etnocentrismo marcante, que privilegia o Ocidente e raramente aborda o fenômeno da mistura, se ocupando mais dos movimentos nacionalistas, pelo nascimento das identidades, pelas relações de cultura popular e cultura erudita (pp55).
As mestiçagens quebram a concepção linear do tempo, pois rompem com a concepção evolutiva, pois não há encadeamento, nem sucessão ou substituição de fatos e se apresenta cheia de imprevisibilidade. A ordem das coisas desaparece e com ela o desequilíbrio se instala com a conquista das almas, corpos e territórios do Novo Mundo, trazendo em si a presença tantos dos fantasmas dos antigos deuses, como a do Moloch universal.
As refêrencias dos povos da América foram abandonadas por força das circunstâncias ou perdidas com a derrota, graças à chegada da era das Conquistas. Todos os envolvidos experimentaram o recuo de suas origens e vivenciaram o fenômeno do distanciamento físico e psíquico, independentemente de seus lugares de origem. Pessoas foram privadas de seu espaço conhecido e viram desaparecer a representação material de seus objetos de fé e força, com a destruição de seus ídolos e templos. Isso para a aristocracia indígena consistiu numa marca psicológica humilhante e sem precedentes, principalmente com a imposição forçada do cristianismo, passível de ser questionado em seu comportamento. A dessacralização desse mundo ocorreu de maneira bárbara e acelerou a desorientação dos indígenas, ficando mais fácil sua sujeição e exploração por parte dos invasores.
Vimos, portanto, tratar de um extenso e denso tema, onde cabem muitas pesquisas e observações da parte dos historiadores para que se desfaça a nebulosa que permeia essa época cheia detalhes tão relevantes, como o da mestiçagem, que nos possibilitará uma leitura mais próxima do real em relação ao surgimento desta nova relação, criada através da violência e que, apesar de terem sido “soldadas” uma a outra, permanecem estranhas entre si durante muitos decênios.
Bibliografia : (Gruzinski, Serge;O Pensamento Mestiço - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.)
Trabalho elaborado por Mirna Galesco Dias - Curso História Puc Campinas - Disc. América Espanhola - Professora Ana Rosa Cloclet, 2010
Muito bom o texto!
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