''Abastecimento, Carestia e
Fome no Brasil no século XIX”
RESUMO
O
objetivo deste trabalho é analisar a carestia de alimentos ocorrida no Brasil
na segunda metade do século XIX. Nosso propósito é verificar a validade das
causas atribuídas ao fenômeno. A imprensa da época considerava que a carestia
era fruto da diminuição da produção agropecuária, após a extinção do tráfico de
escravos entre África e Brasil, em 1850, porem os registros e notas
estatísticas, organizados por Sebastião Ferreira Soares, demonstram o
contrário. O mercado interno de abastecimento, gerido por monopólios e cartéis,
desenvolve-se em cada região, voltado ao abastecimento da Corte no Rio de
Janeiro e para as exportações, em detrimento das próprias províncias. Um jogo
de interesses se estabelece, influenciando o abastecimento interno e atrasando
a formação da rede interna de abastecimento num nível não mais regional, e sim,
nacional.
Palavras-chave: História Regional; Sistema Escravista; Carestia; Fome; Mercado
Interno; Mercado de Carne; Brasil-século XIX.
ABSTRACT
The objective of this
study is to analyze the scarcity of food occurred in Brazil in the second half
of the nineteenth century. Our purpose is to verify the validity of the causes
attributed to this phenomenon. The press at the time believed that the famine
was the result of decreased agricultural production, following the abolition of
the slave trade between Africa and Brazil, in 1850, but the records and
statistics notes, organized by Sebastiao Ferreira Soares, prove otherwise. The
domestic supply, run by monopolies and cartels, is developed in each region,
aimed to supply the Court in Rio de Janeiro and exports at the expense of their
own provinces. A game of interest is established, influencing domestic supply
and delaying the formation of the internal supply at no more regional, but
national.
Keywords: Regional
History; slave system, cost of living; Hunger; Internal Market, Meat Market,
Brazil-nineteenth century.
INTRODUÇÃO
Entre os anos 1850 e 1860 a crise
de abastecimento vivida pelas províncias do Brasil, sendo a principal causa
atribuída ao fenômeno pela imprensa da época, o fim do trafico de africanos. No
mesmo ano, é assinada a Lei de Terras, marcando o surgimento dos grandes
latifúndios. O propósito deste trabalho é checar a validade das causas
atribuídas ao fenômeno da carestia, inserida no âmbito mais geral das mudanças
que ocorriam naquele tempo, como a formação do mercado interno brasileiro. O
trabalho do Dr. Sebastião Ferreira Soares,
“Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros
alimentícios no Império do Brazil”, organizado de forma clara e objetiva,
demonstra o crescimento significativo da produção agrícola em cada Província
brasileira, ano após ano.
Nos registros feitos por Soares, encontramos cada uma das regiões sendo
atingidas pela carestia de forma peculiar. Buscamos outros autores no proposito
de entender e explicar a construção do mercado de abastecimento interno, em
tempos de escravidão.
A aprovação da Lei de Terras foi a maneira encontrada pelo Estado para
restringir o acesso a terra aos grandes agricultores, forçando tanto aos
imigrantes que chegavam, como os trabalhadores livres e escravos libertos, que
não tinham recursos suficientes para aquisição da terra, vender sua força de
trabalho, mendigar ou pilhar, como forma de sobrevivência. (Vitorino, Artur
José Renda; Cercamento à brasileira:
conformação do mercado de trabalho livre na corte das décadas de 1850 a 1880
- Campinas, SP: [s.n.], 2002, p.40). Obviamente estes trabalhadores levariam muitos
anos para quiçá um dia, conseguir sua independência dos grandes fazendeiros.
O Rio de Janeiro neste momento torna-se um
agitado centro comercial, financiando importações, sociedades anônimas, bancos,
casas comerciais, empresas, e o trafico inter-regional de escravos. A politica
de exploração colonial fazia com que a maior parte da produção de gêneros
alimentícios, priorizasse o abastecimento da capital do Império e as demandas
de exportação; praticamente toda a produção das Províncias. Além disso, o
mercado de alimentos que abastecia os centros urbanos passa a ser alvo de
especuladores, que a través de cartéis e monopólios manipulavam o abastecimento
e os preços dos alimentos. Tais especulações produziram
crises comerciais em 1857 e 1864.
A crise de abastecimento se espalha pelas
províncias brasileiras neste período e diversas regiões brasileiras foram
afetadas com a inflação dos preços dos gêneros alimentícios, de modo especifico
em cada Província, sendo necessária uma observação atenta de cada região, para
entender como se operou a construção da rede de abastecimento interno, quais as
dificuldades, visto que as prioridades se voltavam á atender as demandas da
Corte e de exportação.
A carestia de alimentos não teve como causa apenas a cessação do trafico
de africanos, ao considerarmos apenas esse fator, impede a compreensão do
fenômeno dentro do âmbito de um processo infinitamente maior, no contexto
mundial naquele momento. Em sua obra “Historia Econômica do Brasil” (PRADO, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006), a
partir do capitulo “A Era do
Liberalismo”, expõe o quadro mundial das tensões causadas pela chegada do
capitalismo, desmontando as antigas estruturas coloniais retrógradas, no caso
do Brasil, para a consolidação de um sistema que transforma as relações de modo
geral, tanto no sentido econômico e politico, quanto sócio-cultural.
O novo sistema e suas particularidades em cada região são influenciados
pela transição da economia mercantil colonial para o capitalismo. Nosso olhar
parte do Rio de Janeiro para dentro do Brasil, e as “Notas Estatísticas sobre a Produção Agrícola e a Carestia dos Gêneros
Alimentícios no Império do Brasil – Rio de Janeiro 1860”, elaborada pelo
Dr. Sebastião Ferreira Soares, fonte primária, eixo de nossa pesquisa, descreve
a realidade econômica do Brasil no ano de 1860.
Ferreira
Soares, contemporâneo dos fatos em questão, gaúcho, nascido em21 de
abril de 1820 no Rio Grande do Sul, estado que se destaca na produção de
documentos contábeis do Brasil, reuniram em seu trabalho, importantes
informações com a organização das notas estatísticas, de forma simples e
explicativa quanto à realidade econômica no Brasil, em l860. Neste mesmo ano,
Soares escreve para o Jornal do Commércio uma série de 24 artigos, baseados em
dados coletados e organizados por ele, apresentando
estatísticas que comprovavam que o ritmo de produção havia aumentado.
Os locais de maior comércio, as províncias do
Rio de Janeiro (Corte) e São Paulo foram bastante castigados pela carestia; ao
norte do país ela também
se fazia observar na Bahia e em Pernambuco, nas províncias de Minas Gerais,
Mato Grosso, Maranhão e do Pará, Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e sua
intensidade variava de região para região, sendo a falta de mão-de-obra
nas lavouras provedoras do mercado interno, apenas um dos fatores a ser
considerado. Outro ponto relevante, diz respeito ao grande índice de
mortalidade entre africanos, devido a um surto de cólera ocorrido em 1855, fez
com que o preço do escravo disparasse e fosse repassado aos consumidores, sendo
causa também do aumento dos preços dos alimentos.
Tendo
como prioridade as exportações e o abastecimento da capital do Império, o Rio
de Janeiro, a produção crescia, mas o acesso a ela era restrito, por ser
direcionada pelos especuladores, que acumularam grandes fortunas, enquanto em
algumas Províncias do Império, a fome se alastrava. Os nefastos efeitos das ações daqueles que “especulavam
com a fome”, atingia principalmente os
mais pobres.
Como dito
anteriormente, cada região sofreu com a falta de alimentos em maior ou menor
proporção. Na Bahia a situação do abastecimento chega a produzir motins e
insurreições, como o ocorrido em Salvado em fevereiro/ março de 1858: a alta
súbita do preço da farinha de mandioca produziu um enorme protesto em frente ao
palácio do presidente da província; aos gritos de "queremos carne sem osso
e farinha sem caroço" a população, armada com paus e pedras, ocupa a
câmara dos vereadores e enfrenta a Guarda Nacional. (REIS, AGUIAR, 1996).
A crise
da carestia ocorre na década que Ilmar de Mattos aponta como ápice do “tempo
saquarema”, estando à elite conservadora no poder, e reforçavam os laços das
hierarquias e seus atributos, definindo as relações entre dominadores e
dominados como paternalista, sua principal característica (TEIXEIRA, pp.54).
A imprensa da época
se manifestava de acordo com sua postura politica, e o Jornal do Commercio atribuiu imediatamente às altas dos preços e a
falta de gêneros alimentícios à cessação do tráfico de escravos.
(...) A cessação do tráfico de Africanos
privou os nossos agricultores de recursos abusivos embora mais únicos, de que
dantes se prevalecião para multiplicar os braços cultivadores. A peste do
cholera-morbus, a mortalidade regular dos escravos, diminuirão e vão
progressivamente diminuindo o numero de escravos; a desproporção que existe
entre captivos do sexo masculino sobre os do sexo feminino tira todas s
esperanças de que os nascimentos venhão preencher os vácuos abertos pela morte;
decresceu portanto e decrescerá aimda mais o trabalho, e naturalmente a
produção ressentio-se, e ainda mais se ressentirá desse descrescimento. (Retrospecto
político do anno de 1857”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 4 jan. 1857,
p.1).(apud Vitorino, Artur José Renda;
Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte das
décadas de 1850 e 1880. Campinas, SP [s.n.], 2002).
No Rio de Janeiro, o Jornal do
Commercio faz uma retrospectiva do ano anterior (1857), noticiando que:
(...) A carestia dos gêneros alimentícios é um dos problemas de mais
embaraçosa solução na actualidade. effeito lamentável de uma ou duas causas, é
tanto mais calamitoso quanto a sua maligna influencia é principalmente sentida
pelas classes menos protegidas da fortuna; podem as causas que produzem ser
vencidas ou removidas?... (Retrospecto político do anno de 1857”, Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 4 jan. 1857, p.1 (apud Vitorino, Artur José Renda; Cercamento à brasileira: conformação
do mercado de trabalho livre na Corte das
décadas de 1850 e 1880. Campinas, SP [s.n.], 2002)
Este jornal, informativo de cunho conservador, mostra a carestia como “efeito lamentável de uma ou duas causas”
minimizando sua extensão. É através das estatísticas que temos uma visão da possível
realidade brasileira na época dos fatos.
A questão da carestia aparecia nas
páginas dos periódicos da época, que
buscavam respostas para o fenômeno: “Quaes
as causas claras ou latentes que actuam no Brasil para a alça dos preços de
todos os gêneros alimentícios” (SOARES, p.18).
A situação do trabalhador livre e pobre pode ser constatada no noticiário
impresso, num quadro muito bem exposto. Além da alta nos preços dos alimentos,
outros elementos, como o preço dos alugueis e as condições de moradia também
contribuem para piorar a situação das famílias dos trabalhadores, em 1856:
"Ainda não extincta a calamitosa época da carestia
dos viveres, aparece
agora o augmento dos aluguéis das casas. Esta alternativa
para o homem que pelo seu trabalho apenas mal póde attender ás necessidades
mais urgentes da vida é summamente vexatoria; e deve sem duvida acarretas a desgraça
de muitos, que não podendo satisfazer exigências tão pesadas, e fustigados pela
necessidade, pratiquem actos infames que bem longe estão de pensar e praticar. É
sabido e notorio que a classe de empregados publicos, militares e artistas
contão receber mensamente uma quantia certa pelo seu trabalho, e desta feita a
divisão para as precisões da vida, impossivel é na actualidade fazer doce
receita com a despeza; como pois se pretende impor mais este acrescimo em suas
habitações! Quer-se por ventura que a classe pobre sugeite-se a morar em
cortiços como abelhas? Não será admissivel que o pobre possa ter sua
commodidade? Dizem os senhorios que o augmento dos alugueis das casas provem de
ter havido accrescimo na decima das mesmas. Se esta é a razão primitiva para
tal augmento, desde já me antecipo a pedir a S. Ex. o Sr. ministro da fazenda
que, em attenção ao estado deploravel do pobre, se digne modificar esta imposição
nas casas cujos alugueis não excederem de 20$00 a 25$oo, pois justamente as que
a classe pobre póde ocupar, p.2)par." (O que será do pobre", Correio Mercantil.
Rio de Janeiro, 25 nov.).
Nove anos depois, Dr. Antônio Corrêa
de Sousa, em sua tese de concurso para cadeira de hygiene da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, escrevia:
"Não é no centro da cidade (Rio de Janeiro),
sobretudo da cidade velha
que habitam individuos, que merecem a denominação de
pobres; nesses
lugares , centro da actividade e do commercio, as
habitações, posto que
geralmente detestaveis, são de preços de tal meneira
fabulosos, que a
classe pobre não comporta. É pois nos lugares um pouco
affastados do
centro da cidade que residem os pobres livres. As casas
que habitam são geralmente de acanhadas dimensões, baixas,
edificadas ao nivel do solo, e munidas de um pequenissimo
numero de
janellas; muitas vezes são destituidas de assoalho e tem
por cobertura a
telha.
A par destas habitações outras existem, ainda mais
prejudiciais á saude
pública pela preterição a mais completa de todas as regras
hygienicas na
sua construcção e pela circumstancia da agglomeração de
individuos.
Queremos fallar dos cortiços, isto e, de compridas casas,
singularmente
divididas em um sem numero de cubiculos estreitos e
escuros, onde existem
accumuladas muitas pessoas.
Há uma parte de nossa população pobre, que fugindo do
centro da cidade
onde as casas estão caras, vão habitar os arrabaldes ou
mesmo montanhas
situadas no coração da cidade. Estes, com quanto não achem
nas casas as
condições satisfatorias de salubridade, estão todavia em
melhores circumtancias de que outros." (Costa, “Qual a alimentação que usa a
classe pobre do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança,
1865,pp30-1)”
Diante desse quadro, podemos perceber uma realidade plena de dificuldades
para os mais pobres, que conviviam com a precariedade da pobreza sem nenhuma
qualidade de vida básica, uma contradição diante da riqueza que circulava na
Corte. Foi o inicio do surgimento dos inúmeros complexos de favelas que existem
atá hoje no Rio de Janeiro.
Contrapondo-se ao discurso da imprensa e dos deputados, nas sessões
realizadas do parlamento de 1859 e 1860, Soares demonstrou através de seus
estudos, 24 artigos que escreveu baseado em documentação oficial e publicados
no Jornal do Commércio (Rio de Janeiro) de 21/01/1860 á 29/05/1860, quando argumentou
brilhantemente a favor da economia do Brasil, comprovando que esta não
caminhava para um "abismo", conforme afirmavam os deputados. Seus
argumentos, irrefutáveis, calaram no espírito público, restabelecendo a
confiança dos bancos estrangeiros, principalmente o inglês, no Império do
Brasil. Esse fato pode ser constatado observando-se os empréstimos públicos,
realizados com grandes vantagens para o Brasil, que foram contraídos em
Londres, nos anos de 1860 e 1863. (apud Vitorino, p. 97, nt. 196). No decorrer
de sua narrativa, Soares se posiciona varias vezes e duramente contra a
escravidão, classificando tal prática como um erro de consequências nefastas
para o futuro do país (SOARES, pp.6).
Ao contrapor esta versão, Sebastião Soares considerava que a carestia era
fruto da especulação dos atravessadores, e estava inserida no âmbito mais geral
das mudanças que influenciaram na configuração inicial do mercado interno
brasileiro, após a proibição do tráfico de africanos. Soares, ao longo de sua
obra, apresenta diversas tabelas, como esta abaixo, numa demonstração do
crescimento do comercio geral de importação e exportação, relativa aos
exercícios 1854-55 e 1863-4:
Demonstração do
commercio geral e especial das diversas províncias do Império do Brasil nos exercícios
de 1854-55 e 1863-64
|
||||||
Ordens
|
Províncias
|
1854 – 1855
|
1863 - 1864
|
|||
1ª ordem
|
Rio de Janeiro...................
Pernambuco......................
Bahia................................
Rio grande do Sul............
|
114.934:000$
27.418:000$
28.277:000$
15.726:000$
|
150.797:000$
52.383:000$
40.371:000$
22.538:000$
|
|||
2ª ordem
|
Maranhão.........................
Pará..................................
São Paulo........................
Alagoas
Parahyba
Ceará
|
6.031:000$
9.325;000$
10.044:000$
2.8658:000$
2,347:000$
2.232:000$
|
14.993:000$
13.513:000$
17.826:000$
10.434:000$
9.310:000$
6.160:000$
|
|||
3ª ordem
|
Sergipe
Paraná
Santa Catharina
R. Grande do Norte
Piauhy
Espirito Santo
|
1.377:000$
2.868:000$
1.368:000$
372.000$
258:000$
139:000$
|
4.949:000$
3.338:000$
2.096:000$
1.902:000$
1.493:000$
1.214:000$
|
|||
4ª ordem
|
Mato Grosso
Amazonas
Minas Gerais
Goyaz
|
1.309:000$
1.000:000$
8.760:000$
3.050:000$
|
1.931:000$
2.031:000$
10.3000:000
4.500:000$
|
|||
Províncias marítimas
Províncias do Interior
|
225.642:000$
14.200:000$
|
353.982:000$
18.983:000$
|
||||
As regiões vão se transformando e seguindo o ritmo
ditado pelos grandes latifúndios. Algumas prosperavam outras não; as populações
flutuante, formadas de trabalhadores livres e escravos, deslocam-se em busca de
trabalho, influenciando deste modo o desenvolvimento das regiões.
No Mato Grosso o aumento dos preços foi provocado
pelo aumento demográfico devido à afluência de criadores de gado para aquela
província, que para comercializar suas rezes e carne defumada e salgada,
utilizavam a navegação no Rio Paraná. Fornecia desse modo o charque para o Rio
de Janeiro e outras localidades, causando prejuízos na região de origem, pois essas
mercadorias passaram a faltar e a ter seu preço elevado. (Jornal do
Commercio. Rio de Janeiro, 9 jan. 1859, pp. 1-2).
Minas Gerais teve aumento em sua população,
sofrendo com a carestia e problemas com o clima, porem o fator que influenciou,
neste caso, foi a retirada de braços trabalhadores na lavoura e a inserção
destes no trabalho em obras públicas. O encarecimento da carne bovina e suína,
devido ao aumento da demanda, as condições climáticas nesta região foram os fatores
agravante da escassez de alimentos e o encarecimento dos diversos itens de
primeira necessidade (MARTINS, ”Estudos
Econômicos”, 13(1): 181-209 jan./abr. 1983).
Nas regiões ao sul do Império, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, os aumentos de preços ocorreram de forma mais branda e a causa
que se encontra, nestes casos, apontam que o aumento decorreu da grande
quantidade de alimentos enviados para outras regiões, tornando-se os maiores
fornecedores de farinha e outros cereais para a Corte, no Rio de Janeiro (SOARES,
op. cit., p. 19).
Configurando uma única
região, as províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro remanejaram os
braços escravos para a grande lavoura, direcionados para a produção de café,
açúcar e aguardente, que eram mercadorias com lucro certo, e passaram a comprar
os gêneros para consumo próprio de outras províncias. O encarecimento dos
alimentos provinha também do alto custo dos transportes das mercadorias da
província produtora para os mercados de consumo interno. (Jornal do
Commercio. Rio de Janeiro, 5 fev. 1856, pp. 1-2)
No
período de 1839 a 1864 a produção dos principais itens de exportação
experimenta enorme crescimento de produção, como podermos ver na tabela abaixo:
ARTIGOS
|
Aumento anual de produção (%)
|
Total do periodo (%)
|
Café
|
9,94
|
46,16
|
Assucar
|
2,92
|
4,35
|
Algodão
|
40,46
|
41,64
|
Couros
|
5,73
|
8,73
|
Fumo
|
18,93
|
25,59
|
Gomma elástica
|
61,48
|
86,07
|
Mate
|
17,29
|
25,80
|
Cação
|
9,04
|
10,68
|
Aguardente
|
0,38
|
1,23
|
Fonte: SOARES, Sebastião F.
Elementos de Estatística, Tomo I, 1865: Typographia Nacional, Rio de Janeiro.
Sebastião Soares justifica seus argumentos
de que a extinção do tráfico negreiro não significou a diminuição de braços
para trabalhar a lavoura. Afirma que houveram diversos deslocamentos de mão de
obra das pequenas para as grandes lavouras, o que resultou realmente em falta
de braços para produção interna, porem, de acordo com nosso autor, não foi esse
nem único e nem o principal responsável pela carestia no país Brasil. Em
diversos momentos encontramos sua preocupação em provar, com números em mãos,
que essa informação era distorcida e não procedia de fatos reais. Suas análises
comparativas da exportação do café entre a época que havia o tráfico negreiro e
após a cessação do mesmo, confirmam suas afirmações.
Exercícios
|
Quantidades
|
Valor exportado
|
1840-1841
|
5,059,223
@
|
17,804:000$
|
1841-1842
|
5,565,325@
|
18,396:000$
|
1842-1843
|
5,897,555@
|
17,091:000$
|
Termo médio
|
5,507,367@
|
17,730:300$
|
1843-1844
|
6,294,282@
|
17,986:000$
|
1844-1845
|
6,229,277@
|
17,508:000$
|
1845-1846
|
7,304,582@
|
21,307:000$
|
Termo médio
|
6,519,380@
|
18,933:600$
|
1846-1847
|
9,747,730@
|
21,971:000$
|
1847-1848
|
9,558,141@
|
25,159:000$
|
1848-1849
|
8,600,032@
|
21,513:000$
|
Termo médio
|
9,301,967@
|
22,881:000$
|
1849-1850
|
5,935,770@
|
22,838:000$
|
1850-1851
|
10,148,263@
|
32,604:000$
|
1851-1852
|
9,544,858@
|
32,954:000$
|
Termo médio
|
8,542,965@
|
29,465:300$
|
1852-1853
|
9,923,983@
|
33,897:000$
|
1853-1854
|
8,698,036@
|
35,444:000$
|
1854-1855
|
13,027,524@
|
48,491:000$
|
Exercícios
|
Quantidade
|
Valor
|
Termo médio
|
10,549,847@
|
39,227:300$
|
1855-1856
|
11,651,806@
|
48,013:000$
|
1856-1857
|
13,026,299@
|
54,107:000$
|
1857-1858
|
9,719,054@
|
43,502:000$
|
Termo médio
|
11,465,719@
|
48,540:600$
|
Demonstração do café
exportado nos exercícios de 1840 á 1841 e 1857 á 1858, compreendendo uma época
anterior e outra posterior á cessação do tráfico de africanos (SOARES, pp.28)
Termo médio
Exercicios
|
Quantidade
|
1841-1843
|
5,507,367@
|
1844-1846
|
6,519,380@
|
1847-1849
|
9,301,967@
|
1850-1852
|
8,544.858@
|
Comparação
O
2º mais que o 1º
|
1,012,013@
|
O
3º mais que o 1º
|
3,794,600@
|
O 4º mais eu o 1º
|
3,037,491@
|
O 4º menos que o 3º
|
757,109@
|
Com estas tabelas, constatamos o aumento constante da produção do café,
tanto quando era permitido o trafico, como depois da proibição, “porque a logica dos números não admite outras
observações mais que as das equações que a firmão em suas demonstrações (Soares,
pp.29).
O autor enfatiza a “principal fonte de riqueza do Brasil, a agricultura”
(SOARES, pp. 11), e dados que confirmam que a cessação do tráfico não
interferiu a ponto de prejudicar a produção agrícola, sendo a carestia
resultado de outros fatores.
Na segunda metade do século XIX, o Brasil é impulsionado rumo a grandes
transformações. Os reflexos destas
transformações foram sentidas em todo território, integrado a principio pela
escravidão, e agora pelas redes de abastecimentos regionais que se formavam. Os
deslocamentos de mão de obra escrava para as obras públicas e grandes lavouras
garantia a produção dos gêneros para o mercado externo, e o mercado interno era
prejudicado, devido à falta de planejamento e administração dos produtores, causas
indicadas por Soares em sua obra:
“(...) a imprevisão dos nossos grandes agricultores – que em procura
de interesses immediatos desprezarão a cultura dos generos mais necessário à vida, e
que fazião a fartura de nossos conterrâneos. (Soares, Sebastião Ferreira; Notas Estatísticas sobre A Produção
Agrícola: Carestia dos Gêneros Alimentícios no Império do Brasil, 1860, p.24).
O Rio de Janeiro, principal
cidade e centro comercial do Brasil após 1808 (Soares, pp. 198), tem um aumento
significativo da população, ocasionando aumento de consumo dos produtos
importados e nacionais, produzidos em diversas regiões. As relações mercantis
internamente ligava as províncias, sendo o Rio de Janeiro o centro para onde a
maioria dos produtos convergiam e por isso, incentivavam a produção para o
consumo interno. Desde o século XVIII, com o desenvolvimento da mineração, e
depois a lavoura, as relações comerciais entre mineiros, agricultores e
comerciantes inaugurou a rede interna de abastecimento, sendo a principal delas
a que ligava o sul e o sudeste da colônia. A paisagem era propicia à criação de gado vacum, cavalar e muar e este
se torna um setor que atrai investimentos, na segunda metade do século XVIII (MARCONDES, p.41).
A pecuária, juntamente com a
cafeicultura, assumem grande importância tanto para o mercado externo, no caso
do café, como o interno, o comércio das carnes verdes faz desse produto um
termômetro que regula o preço de outros itens de consumo. Esses mercados passam
a se desenvolver de acordo com as necessidades regionais e intraregionais, para
depois configurar-se numa completa rede de abastecimento.
O porte do comércio de
abastecimento interno foi descrito por Auguste de Saint-Hilaire em 1816, dando
destaque também para as tropas e o gado:
“As estradas vizinhas da capital do Brasil são hoje em dia tão
movimentadas como as que conduzem às grandes cidades da
Europa. Durante umas duas léguas não deixamos de encontrar homens a pé
e a cavalo, e negros que conduziam descarregados os cargueiros que pela manhã
haviam levado à cidade com provisões; rebanhos de bois, e varas de porcos,
tocados por Mineiros, avançavam lentamente, fazendo voar turbilhões de pó (...).(SAINT-HILAIRE,
1975b, p. 36, apud Marcondes, p. 47).
O transporte de mercadorias
entre São Paulo e Rio de Janeiro, em 1770, foi facilitado pela construção da
estrada que ligava a freguesia de Piedade à Fazenda Santa Cruz, tornando-se uma
via de acesso melhor que à trilha do gado que antes existia (MARCONDES, p.43).
ANO
|
VALOR ARRECADADO
|
NÚMERO DE RESES
|
1801
1802
1803
1804
1805
1806
1809
1810
1811
Total
|
69$920 874
544$560
664$800
690$480
476$160
613$000
973$280
1:072$720
1:093$680
6:198$600
|
874
6.807
8.310
8.631
5.952
7.663
12.166
13.409
13.671
77.483
|
Fonte: AESP, Ordens 335 e 336 -
Obs: A arrecadação de 1801 compreende apenas o mês de dezembro. A partir de
fevereiro de 1805 até o final do ano de 1806 tem-se apenas o informe do total
da receita sem a discriminação por pessoa que pagou a taxa. Por fim, em 1811
acrescenta-se a importância de 139$760 réis referentes a 1.747 reses que
passaram pelo caminho novo sem guia, mas cuja taxa cobrada consta no registro
pertencente ao sargento-mor Ventura José de Abreu e outros lançados à parte por
faltar a guia, mas com taxa cobrada no registro.
Ao mesmo tempo identificamos a ação de
monopólios e cartéis atuando neste contexto . De acordo com a tabela abaixo:
FAIXAS
DE TAMANHO
DO REBANHO
POR NEGOCIANTE
|
NEGOCIANTE
|
NÚMERO DE RESES
|
||
Número
|
%
|
Número
|
%
|
|
1
a 9 animais
|
101
|
58,4
|
5.538
|
8,6
|
100 a 999 animais
|
61
|
35,3
|
14.707
|
22,8
|
1000 ou + animais
|
11
|
6,3
|
44.346
|
68,6
|
Total
|
173
|
100,0
|
64.591
|
100,0
|
Fonte:
AESP, Ordens 335 e 336.
O comércio de gado concentra-se nas
mãos de uma elite mercantil; os comerciantes, 58,4% conduziram apenas 8,6 % dos
animais transportados, enquanto 6,3 de negociantes conduziram (68,6%), mais da
metade dos animais (MARCONDES, p.56).
Surgem os negociantes e
“reguladores” do comércio de gado, senhores de terras, famílias com tradição no
comércio, que não criavam a quantidade de animais que negociavam. Especuladores
que acumularam recursos suficientes com o negocio do gado, passam a atuar na
agricultura produzindo café, tornando-se sua principal ocupação. Donos de terra
e bens vultosos, tornam-se cafeicultores muito bem sucedidos, e aumentam cada
vez mais seus patrimônios (MARCONDES, pp.61).
Muitos investiram na criação de gado. A partir de 1852 o preço da carne
verde, seguindo a lei da demanda, aumentou e despertou a possibilidade de
lucros maiores aos produtores. Devido à procura, pelo menos boa parte dos
lavradores passou a se dedicar a essa cultura em maior escala. A ponto dos
agricultores concentrarem nesta produção todos os seus esforços, em detrimento
de outros produtos para o próprio sustento da família e dos trabalhadores.
Adotaram o falso raciocínio de que poderiam comprar o que necessitassem com os
grandes lucros da produção pecuária e cafeeira, assim como outros produtos
também exportados. O comércio da carne
fez acumular imensas fortunas, à custa da geração de miséria para muitos.
“O grande comerciante não se envolvia diretamente no transporte e
venda dos animais. As informações levantadas a partir dos relatos dos viajantes
permitiram perceber a larga utilização de capatazes e prepostos para o manejo e
a venda do gado. Este fato aponta para a presença de estruturas de
comercialização mais complexas e, como se verá adiante, de grandes comerciantes
de gado para o Rio de Janeiro, que detinham uma parcela significativa dos
montantes transacionados (MARCONDES,pp.54)
Ao final do século XIX , no Brasil os ex-traficantes de escravos
tornaram-se donos de terras , assim como comerciantes, membros da elite
brasileira que influenciavam as politicas públicas, que prosperavam com as
exportações monoculturas de café e algodão e também com a pecuária . Aqueles
que eram donos do capital nacional buscaram a melhor maneira de investir seus
recursos, muitas vezes no mercado internacional visando maior lucro. São
formuladas as politicas econômicas, que vão intermediar os interesses dos
investidores.
Por outro lado, produtores de diversos itens excedentes, com as mudanças
na produção, continuam a consumir o que não mais produziam, e o resultado
previsível: os preços tiveram altas significativas. Nas regiões onde os
lavradores não abandonaram o cultivo de alimentos, a carestia não se manifestou
na mesma intensidade. A produção não aumentou nem diminuiu, apenas os preços
elevaram-se devido à grande procura. Interessa-nos
também neste tema, apontar o Rio de Janeiro como escoadouro da produção interna
brasileira, mesmo após a partida da Corte, mantendo-se como centro financeiro
do Império.
A tese de doutorado de Juliana Teixeira de Souza , “A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações
na regulação do comércio de gêneros (1840-1889) - Campinas, SP: [s.n.], 2007”,
nos traz informações, expondo as etapas da formação administrativa brasileira,
ainda não estando definidos claramente os setores de atuação das diferentes
esferas públicas, suas atribuições e as sobreposições, não podemos perceber de
imediato qual o limite de atuação dos poderes imperial e municipal.
A postura adotada pela Câmara Municipal, nesse momento, demonstra sua
orientação pela visão tradicional referente a regras e deveres sociais
subentendidos, que haveriam de ser aceitas e cumpridas por cada setor da
sociedade, ao utilizar o termo:
“[...] porque crime se deve imputar aquele que especula sobre a fome de seus semelhantes” (THOMPSON, E. P. Costumes em
Comum, p. 152. Apud. Teixeira, p.53) .
Teixeira faz alusão ao conceito de economia moral, elaborado por Thompson
ao realizar suas analises sobre os cercamentos na Europa, porem tal conceito
não cabe ao caso do Brasil, pois não havia uma herança ou economia moral em comum para ser evocada pela população brasileira.
Não há evidencias de nenhum movimento organizado e direcionado para algo que
não fosse estritamente essencial, imediato e regional. Não havia consciências
politizadas, havia carência de gêneros básicos para a sobrevivência, os
alimentos. Estavam todos sob o que Marx chamaria de “lei da miséria crescente” (Marx, O Capital, Tomo 3).
A gestão do poder vigente seguia moldes ultrapassados, que não respondiam
satisfatoriamente diante das demandas e estas pediam a elaboração de leis,
regulamentações, que foram sendo formuladas de acordo com o momento, de modo a
atender os diversos interesses envolvidos na questão. Vejamos as considerações
sobre a carestia de alimentos do vereador Dr. Domingos de Azeredo Coutinho
Duque Estrada, em 1859 na Câmara Municipal :
Sala
de Sessão da Ilustríssima Câmara aos 17 de Março de 1859.
“Dentre as calamidades que afligem
os povos, é sem dúvida alguma a fome aquela que mais eles se ressentem, e por
conseqüência também aquela que mais deve merecer a atenção dos governantes e
toda a sua solicitude no intuito de remediá-la. A fome desvaria o povo e o
arrasta a um milhão de desatinos, cujas conseqüências são sempre funestas. O
clamor público nesta capital vai se alteando de dia em dia contra a carestia
dos gêneros de primeira necessidade.
Todos os gêneros têm subido de
preço, fabulosos pelo culposo espírito de ganância dos atravessadores e
monopolistas. O povo clama, e menos justo em suas queixas, por mal informado
certamente, censura-nos e tacha-nos de indiferentes na persuasão de que, ao
alcance da Câmara Municipal se acham os meios de remediar o mal! Pobre Câmara
Municipal que tão moribunda estás! Tão cercada em suas atribuições, que apenas
te resta hoje o teu foro de Ilustríssima, e direito de dar licenças para obras
particulares, e isso mesmo enquanto não vier quem entenda mais conveniente
cometer tal atribuição à diretoria das obras públicas, ou à Academia de Belas
Artes! Mas embora reduzidos a um irrisório simulacro do antigo Senado e quase
totalmente nulificados, somos nós ainda, Senhores, os denominados
representantes da Municipalidade, e pois que o somos, aproveitamos os tristes
restos do lampejar de nossa existência para alguma coisa fazermos a bem dos
nossos constituintes.
Proponho-vos, que se dirija por
mais uma vez ao Governo Imperial uma representação pedindo todas as
providências possíveis tendentes a aniquilar o sofrimento do povo pela carestia
das carnes verdes e de todos os outros gêneros ditos de primeira necessidade. Dr.
Duque Estrada.” (AGCRJ, Gêneros
Alimentícios, cód. 59-1-45, 17 de março de 1859, apud. Teixeira, p.75).
A era do capitalismo
inicia-se no Brasil a partir de dois marcos principais: A Lei de Terras
(18/09/1850), destinada a manter os latifúndios (VITORINO, p.40), e a Lei
Euzébio de Queiroz, que proibiu o tráfico de africanos (VITORINO, p38, nt.56).
Com a Lei de Terras criou-se a dificuldade de acesso; pequenos proprietários
foram sendo expulsos ou integrados aos grandes latifúndios, sendo afastados da
propriedade e dos meios de subsistência por não possuírem os recursos para
aquisição da terra, agora mercantilizada. Isso gerou renda aos grandes proprietários,
e garantiu a estrutura necessária para o desenvolvimento capitalista. Também a
questão da escravidão foi vista sob essa nova ótica. Com a proibição do
trafico, o preço do escravo teve uma alta de 155,6 % entre 1845 e 1855 (BUESCO,
1970, p. 245). Acabar então com o trafico tornou-se a melhor opção e claro, sob
o arranjo de diversas negociações, o capital destinado ao tráfico é
reconvertido para obras de infraestrutura. O Estado sinalizava aos donos do
capital a necessidade de investimentos no mercado, oferecendo garantias de
preservação dos latifúndios, já que o negocio do trafico havia acabado, e desse
modo garantir retorno dos investimentos destinados ao desenvolvimento
estrutural das regiões abastecedoras do mercado externo e interno, acelerando
os negócios e gerando maior lucro. (Vitorino, p. 40).
Ocorreu a emigração de uma parte do capital do trafico com a deportação
de traficantes por ordem do ministro da justiça Euzébio de Queiros. Mesmo sendo
contra o comércio de “carne humana”, Soares repreende o governo brasileiro por:
“...determinar a deportação dos
principais negociantes negreiros, que por denuncias e reclamações dos
diplomatas inglezes, se dizia que tentavam ainda recomeças no trafico dos
Africanos; porque de tal medida resultou sahirem do país grandes sommas; que
por certo aqui terião ficado para auxiliarem as nossas indústrias, augmentando
a riqueza nacional” (Cf. Soares, Esboço, ou primeiros traços da crise
commercial da cidade do Rio de Janeiro, em dez de setembro de 1864, E & H
Laemmert, 1865, p.30).
Os desvios de mão-de-obra para as grandes fazendas, assim como para o
trabalho nas ferrovias e estradas de rodagem, refletiram diretamente na
produção. Nos lugares onde não houveram obras e vantagens financeiras para os
trabalhadores, mais que suas pequenas colheitas, a agricultura seguiu no mesmo
ritmo.
O capital antes retido no comercio de escravos foi direcionado para
outros setores, tais como: a formação das sociedades anônimas, operações de
importação e exportação, financiamentos de empresas que trariam o
desenvolvimento do Brasil, como transportes, por exemplo e em diversas
transações bancárias. Em 1852, o capital investido no setor de transportes,
privilegiou o governo na construção das estradas de ferro no Rio de Janeiro e
Minas Gerais, assim como também a navegação dos rios Mucuri e Amazonas. A
grande soma de dinheiro que passa a circular, permite a articulação de cartéis
e monopólios nos diversos setores, fato eu interfere de modo negativo para a
formação de uma rede nacional de abastecimento.
Soares denuncia o jogo de agiotagem e cartéis, como sendo também
elementos causadores da carestia:
"Os lucros adquiridos sem grande trabalho
naquela época despertaram a cobiça dos homens ambiciosos que tinham jogado nas
ações dos bancos com grande proveito; e vendo essa mina exausta, cogitaram nos
meios de formar um novo Eldorado,
visto que a todo transe queriam enriquecer em pouco tempo, pelo que julgaram
lícito todos os meios dos quais lhe pudesse resultar ganho imediatos. Eis a
origem do monopólio, que ainda é mais imoral e reprovado que o jogo dos
agiotas; porquanto este só prejudica a quem nele voluntariamente se envolve, e
aquele vai ferir de morte a toda a sociedade, sacrificando o pobre trabalhador
e sua misérrima família." (SOARES. p. 286-7).
Mesmo
sem garantias de lastro para crédito, o funcionamento de casas bancárias foi
autorizado, promovendo desse modo um verdadeiro “carnaval bancário”,
operacionalizando suas ações na praça comercial. Seu auge, em 1857, o jogo de
créditos veio abaixo, quando ocorreu a primeira crise mundial capitalista. A
Rússia retoma as exportações de cereais e pressiona a baixa de commodities em Nova Iorque. A
repercussão da baixa de preços, sobrevinda nos EUA, refletiu na Europa, e logo
em seguida no Rio de Janeiro e em outras praças comerciais, causando a quebra
de diversos estabelecimentos financeiros. Os reflexos se sentem tanto nas
provincias da Corte, assim como internacionalmente, um indicativo da
participação efetiva do Brasil nas negociações internacionais. Paralelamente a
tudo isso, as dificuldades encontradas pelos agricultores para concessão de
crédito para a produção agrícola, prejudicam os pequenos produtores.
“Era o
tempo de ganhar dinheiro a todo transe, tornando-se legítima a suspensão de
todas as garantias da honra, do justo e do honesto; em que se podia sem
escrúpulos violar os princípios da probidade, amizade e consciência.(Vitorino, 2007)
O crédito aos agricultores não atendia as reais necessidades de
custeio dos instrumentos e maquinário para produção. A custa de muito
sofrimento e privação, e arriscando-se a juros impraticáveis (18%) cobrados
pelo banco, acrescido de mais juros, (12%), ao ano pagos aos comissários (Soares,
1865, Tomo I, p. 215, nota 8). Muitos agricultores perderam tudo, sendo
conduzidos muitas vezes à miséria extrema.
Os obstáculos legais que o lavrador tinha que ultrapassar, muitas
vezes eram intransponíveis. Era um trabalhador, mas seu trabalho não lhe servia
de garantia e a complexidade no tocante aos bens de raiz, praticamente impedia
o acesso do lavrador aos meios que poderiam melhorar sua vida. Sobre o
financiamento a lavradores, o desembargador J. R. Brito diz:
“A demora dos processos, em virtude das dilatações fataes de outros termos creados pelas leis e inventados pela fraude, a incerteza dos julgamentos, as difficuldades que se levantão em sua execução, o trabalho, cuidados e amofinações que requer uma lide, ainda que por natureza seja simples, os gastos que absorvem as taxas a que estão sujeitos os processos civeis, são por certas razões ponderosas para que ainda com menores vantagens o capitalista prefira outro ramo de industria que não a lavoura para o emprestimo de seus fundos, ou que exija premios a juros excessivos que de algum modo compensem os riscos de seus capitaes.( Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 10 nov. 1853,p.2).
A questão esbarrava no óbvio: quem executaria os devedores que
pertenciam a uma classe privilegiada, por força das leis, ou pela posição que
ocupavam em suas regiões? Não havia uma legislação especifica, nem estrutura de
controle que dessem garantias que o lavrador honraria seu compromisso. Neste
caso, apenas sua palavra não bastava. Isto se tratando da capital da Corte.
Muito pior era a situação daquele agricultor que vivia nos locais mais
distantes. Fraudes em empréstimos, além das dos cargos administrativos e
judiciais, e as manobras politicas, garantiam sempre retorno do investimento. O
controle sobre o capital exercido por um capitalista era absoluto, e diante
disso o lavrador se via obrigado a provar a posse de bens que lhe pertenciam, o
que era muito simples, nos antigos moldes, mas agora não. Não havia uma
documentação que garantisse essa “propriedade” em favor do lavrador.
"póde
por outro lado um mal epidemico ceifa-la [a escravaria], e o capitalista perder essa garantia e seus
capitais. E não se esqueça que nem os nomes dos escravos, nem as providencias
policiaes podem dar garantia contra a fraude; porque é sobremodo facil mudar
aquelles e inutilisar estes, attenta a natureza e extensão do nosso territorio,
e sobre exemplo de nossa propria lavra (...) "Reforma das
alfandegas. XXVII. Obstáculos que encontra o crédito rural. § IV. Leis fiscaes,
e impostos",Jornal do Commercio.
Rio de Janeiro,
(...) A lavoura tem
pois necessariamente de se arruinar; os agricultores se achão no maior apuro;
notão com immenso pezar que se os cofres publicos estao recheados, dahi não
lhes vem o minimo proveito, lamentão do fundo da alma que parte desse dinheiro
seja antes empregado em robustecer a sanguinolenta ferocidade de povos
turbulentos, que sempre forão e hão de ser nossos eternos inimigos.
("A crise e a lavoura", Jornal
do Commercio. Rio de Janeiro, 8 jun. 1858, p. 2.)
Conclusão
O aprofundamento das questões sobre a carestia sofrida pela
população brasileira no segundo quartel do século XIX, nos remetem ao panorama
mais geral sobre as rupturas que ocorreram para a consolidação do capitalismo no
Brasil. Diversas tensões se estabeleceram devido a pressões externas
internacionais para a cessação do tráfico negreiro, assim como a pressões internas
por parte das oligarquias dominantes, sempre no sentido de atender seus
interesses. Verifica-se a carestia nos grandes centros devido às dependências
de abastecimento interno provido por outras regiões. Nos locais onde a produção
abastecia apenas internamente as províncias, a carestia não se manifestou de
maneira tão acentuada como nas outras regiões.
Tendo como o centro
o Rio de Janeiro, a rede de abastecimento e os mercados de consumo vão se
consolidando de forma lenta, coexistindo com a escravidão; a circulação apoiada
na agricultura, gerava renda aos grandes latifundiários, que migraram para esse
ramo após a proibição do tráfico; entretanto, a maioria da população permaneceu
na miséria. Outro ponto observado por Soares, foi a vinda de imigrantes, sendo
que haviam tantas pessoas sem trabalho, vivendo de diárias e em circunstancias
que comprometiam a própria vida, muitas vezes, de uma família inteira,
principalmente em tempos de carestia (Soares, p.7).
Concluímos ser a
carestia resultado dos arranjos e acertos políticos entre as elites dominantes,
comerciantes e especuladores, no intuito de atender seus interesses e suas
necessidades, relegando as causas sociais a um segundo plano. O preço a ser
pago pelo Brasil por estas posturas de politicas imediatistas e de interesses,
será o enorme atraso em seu desenvolvimento que, impedido por tais práticas,
não acompanhou o crescimento no mesmo ritmo.
Com o fim do trafico
de escravos e a mercantilização da terra, o cenário, o enredo e os atores
políticos assumem novas características e constroem uma nova identidade dentro
da nação chamada Brasil. As transformações nos modos de produção da vida
atingem de forma cruel, principalmente os mais desfavorecidos, que sabiam lidar
com a terra e apenas isso, e viam-se agora rumo ao desconhecido. A custa de
muito sofrimento e muitas dificuldades, consolida-se o mercado de abastecimento
interno e o mercado de trabalho , destinado à classe trabalhadora livre, oriunda
de um sistema escravocrata e desigual, e imigrantes europeus, que chegam nos
vapores em busca da prometida prosperidade no Novo Mundo. As grandes fortunas
pessoais acumuladas neste período não foram acumuladas como riqueza nacional Esses
e outros aspectos contribuíram para a formação das diversas identidades nacionais,
tornando-se característicos e certamente influenciaram os novos projetos
políticos, que surgiram como superação dos anteriores. Marcará profundamente a
politica e a economia brasileira, estabelecida sobre estas bases.
Bibliografia
Fontes Impressas:
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Bibliografia:
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Trabalho de Iniciação Cientifica apresentado em Setembro de 2012 -
Mirna Galesco Dias - Historia do Brasil
Orientador: Prof. Dr. Artur José Renda Vitorino -
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