domingo, 2 de dezembro de 2012


''Abastecimento, Carestia e Fome no Brasil no século XIX”


RESUMO
            O objetivo deste trabalho é analisar a carestia de alimentos ocorrida no Brasil na segunda metade do século XIX. Nosso propósito é verificar a validade das causas atribuídas ao fenômeno. A imprensa da época considerava que a carestia era fruto da diminuição da produção agropecuária, após a extinção do tráfico de escravos entre África e Brasil, em 1850, porem os registros e notas estatísticas, organizados por Sebastião Ferreira Soares, demonstram o contrário. O mercado interno de abastecimento, gerido por monopólios e cartéis, desenvolve-se em cada região, voltado ao abastecimento da Corte no Rio de Janeiro e para as exportações, em detrimento das próprias províncias. Um jogo de interesses se estabelece, influenciando o abastecimento interno e atrasando a formação da rede interna de abastecimento num nível não mais regional, e sim, nacional.

Palavras-chave: História Regional; Sistema Escravista; Carestia; Fome; Mercado Interno; Mercado de Carne; Brasil-século XIX.

ABSTRACT
The objective of this study is to analyze the scarcity of food occurred in Brazil in the second half of the nineteenth century. Our purpose is to verify the validity of the causes attributed to this phenomenon. The press at the time believed that the famine was the result of decreased agricultural production, following the abolition of the slave trade between Africa and Brazil, in 1850, but the records and statistics notes, organized by Sebastiao Ferreira Soares, prove otherwise. The domestic supply, run by monopolies and cartels, is developed in each region, aimed to supply the Court in Rio de Janeiro and exports at the expense of their own provinces. A game of interest is established, influencing domestic supply and delaying the formation of the internal supply at no more regional, but national.

Keywords: Regional History; slave system, cost of living; Hunger; Internal Market, Meat Market, Brazil-nineteenth century.

INTRODUÇÃO

 Entre os anos 1850 e 1860 a crise de abastecimento vivida pelas províncias do Brasil, sendo a principal causa atribuída ao fenômeno pela imprensa da época, o fim do trafico de africanos. No mesmo ano, é assinada a Lei de Terras, marcando o surgimento dos grandes latifúndios. O propósito deste trabalho é checar a validade das causas atribuídas ao fenômeno da carestia, inserida no âmbito mais geral das mudanças que ocorriam naquele tempo, como a formação do mercado interno brasileiro. O trabalho do Dr. Sebastião Ferreira Soares, “Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brazil”, organizado de forma clara e objetiva, demonstra o crescimento significativo da produção agrícola em cada Província brasileira, ano após ano.
Nos registros feitos por Soares, encontramos cada uma das regiões sendo atingidas pela carestia de forma peculiar. Buscamos outros autores no proposito de entender e explicar a construção do mercado de abastecimento interno, em tempos de escravidão.
A aprovação da Lei de Terras foi a maneira encontrada pelo Estado para restringir o acesso a terra aos grandes agricultores, forçando tanto aos imigrantes que chegavam, como os trabalhadores livres e escravos libertos, que não tinham recursos suficientes para aquisição da terra, vender sua força de trabalho, mendigar ou pilhar, como forma de sobrevivência. (Vitorino, Artur José Renda; Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na corte das décadas de 1850 a 1880 - Campinas, SP: [s.n.], 2002, p.40). Obviamente estes trabalhadores levariam muitos anos para quiçá um dia, conseguir sua independência dos grandes fazendeiros.
O Rio de Janeiro neste momento torna-se um agitado centro comercial, financiando importações, sociedades anônimas, bancos, casas comerciais, empresas, e o trafico inter-regional de escravos. A politica de exploração colonial fazia com que a maior parte da produção de gêneros alimentícios, priorizasse o abastecimento da capital do Império e as demandas de exportação; praticamente toda a produção das Províncias. Além disso, o mercado de alimentos que abastecia os centros urbanos passa a ser alvo de especuladores, que a través de cartéis e monopólios manipulavam o abastecimento e os preços dos alimentos. Tais especulações produziram crises comerciais em 1857 e 1864.
A crise de abastecimento se espalha pelas províncias brasileiras neste período e diversas regiões brasileiras foram afetadas com a inflação dos preços dos gêneros alimentícios, de modo especifico em cada Província, sendo necessária uma observação atenta de cada região, para entender como se operou a construção da rede de abastecimento interno, quais as dificuldades, visto que as prioridades se voltavam á atender as demandas da Corte e de exportação.
A carestia de alimentos não teve como causa apenas a cessação do trafico de africanos, ao considerarmos apenas esse fator, impede a compreensão do fenômeno dentro do âmbito de um processo infinitamente maior, no contexto mundial naquele momento. Em sua obra “Historia Econômica do Brasil” (PRADO, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006), a partir do capitulo “A Era do Liberalismo”, expõe o quadro mundial das tensões causadas pela chegada do capitalismo, desmontando as antigas estruturas coloniais retrógradas, no caso do Brasil, para a consolidação de um sistema que transforma as relações de modo geral, tanto no sentido econômico e politico, quanto sócio-cultural.
O novo sistema e suas particularidades em cada região são influenciados pela transição da economia mercantil colonial para o capitalismo. Nosso olhar parte do Rio de Janeiro para dentro do Brasil, e as “Notas Estatísticas sobre a Produção Agrícola e a Carestia dos Gêneros Alimentícios no Império do Brasil – Rio de Janeiro 1860”, elaborada pelo Dr. Sebastião Ferreira Soares, fonte primária, eixo de nossa pesquisa, descreve a realidade econômica do Brasil no ano de 1860.
 Ferreira Soares, contemporâneo dos fatos em questão, gaúcho, nascido em21 de abril de 1820 no Rio Grande do Sul, estado que se destaca na produção de documentos contábeis do Brasil, reuniram em seu trabalho, importantes informações com a organização das notas estatísticas, de forma simples e explicativa quanto à realidade econômica no Brasil, em l860. Neste mesmo ano, Soares escreve para o Jornal do Commércio uma série de 24 artigos, baseados em dados coletados e organizados por ele, apresentando estatísticas que comprovavam que o ritmo de produção havia aumentado.
             Os locais de maior comércio, as províncias do Rio de Janeiro (Corte) e São Paulo foram bastante castigados pela carestia; ao norte do país ela também se fazia observar na Bahia e em Pernambuco, nas províncias de Minas Gerais, Mato Grosso, Maranhão e do Pará, Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e sua intensidade variava de região para região, sendo a falta de mão-de-obra nas lavouras provedoras do mercado interno, apenas um dos fatores a ser considerado. Outro ponto relevante, diz respeito ao grande índice de mortalidade entre africanos, devido a um surto de cólera ocorrido em 1855, fez com que o preço do escravo disparasse e fosse repassado aos consumidores, sendo causa também do aumento dos preços dos alimentos.
Tendo como prioridade as exportações e o abastecimento da capital do Império, o Rio de Janeiro, a produção crescia, mas o acesso a ela era restrito, por ser direcionada pelos especuladores, que acumularam grandes fortunas, enquanto em algumas Províncias do Império, a fome se alastrava. Os nefastos efeitos das ações daqueles que “especulavam com a fome”, atingia principalmente os mais pobres.
Como dito anteriormente, cada região sofreu com a falta de alimentos em maior ou menor proporção. Na Bahia a situação do abastecimento chega a produzir motins e insurreições, como o ocorrido em Salvado em fevereiro/ março de 1858: a alta súbita do preço da farinha de mandioca produziu um enorme protesto em frente ao palácio do presidente da província; aos gritos de "queremos carne sem osso e farinha sem caroço" a população, armada com paus e pedras, ocupa a câmara dos vereadores e enfrenta a Guarda Nacional. (REIS, AGUIAR, 1996).
A crise da carestia ocorre na década que Ilmar de Mattos aponta como ápice do “tempo saquarema”, estando à elite conservadora no poder, e reforçavam os laços das hierarquias e seus atributos, definindo as relações entre dominadores e dominados como paternalista, sua principal característica (TEIXEIRA, pp.54).
A imprensa da época se manifestava de acordo com sua postura politica, e o Jornal do Commercio atribuiu imediatamente às altas dos preços e a falta de gêneros alimentícios à cessação do tráfico de escravos.
  (...) A cessação do tráfico de Africanos privou os nossos agricultores de recursos abusivos embora mais únicos, de que dantes se prevalecião para multiplicar os braços cultivadores. A peste do cholera-morbus, a mortalidade regular dos escravos, diminuirão e vão progressivamente diminuindo o numero de escravos; a desproporção que existe entre captivos do sexo masculino sobre os do sexo feminino tira todas s esperanças de que os nascimentos venhão preencher os vácuos abertos pela morte; decresceu portanto e decrescerá aimda mais o trabalho, e naturalmente a produção ressentio-se, e ainda mais se ressentirá desse descrescimento. (Retrospecto político do anno de 1857”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 4 jan. 1857, p.1).(apud Vitorino, Artur José Renda; Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte das décadas de 1850 e 1880. Campinas, SP [s.n.], 2002).
No Rio de Janeiro, o Jornal do Commercio faz uma retrospectiva do ano anterior (1857), noticiando que:
  (...) A carestia dos gêneros alimentícios é um dos problemas de mais embaraçosa solução na actualidade. effeito lamentável de uma ou duas causas, é tanto mais calamitoso quanto a sua maligna influencia é principalmente sentida pelas classes menos protegidas da fortuna; podem as causas que produzem ser vencidas ou removidas?... (Retrospecto político do anno de 1857”, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 4 jan. 1857, p.1 (apud Vitorino, Artur José Renda; Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte      das décadas de 1850 e 1880. Campinas, SP [s.n.], 2002)

Este jornal, informativo de cunho conservador, mostra a carestia como “efeito lamentável de uma ou duas causas” minimizando sua extensão. É através das estatísticas que temos uma visão da possível realidade brasileira na época dos fatos.
A questão da carestia aparecia nas páginas dos periódicos da época, que  buscavam respostas para o fenômeno: “Quaes as causas claras ou latentes que actuam no Brasil para a alça dos preços de todos os gêneros alimentícios” (SOARES, p.18).
A situação do trabalhador livre e pobre pode ser constatada no noticiário impresso, num quadro muito bem exposto. Além da alta nos preços dos alimentos, outros elementos, como o preço dos alugueis e as condições de moradia também contribuem para piorar a situação das famílias dos trabalhadores, em 1856:

"Ainda não extincta a calamitosa época da carestia dos viveres, aparece
agora o augmento dos aluguéis das casas. Esta alternativa para o homem que pelo seu trabalho apenas mal póde attender ás necessidades mais urgentes da vida é summamente vexatoria; e deve sem duvida acarretas a desgraça de muitos, que não podendo satisfazer exigências tão pesadas, e fustigados pela necessidade, pratiquem actos infames que bem longe estão de pensar e praticar. É sabido e notorio que a classe de empregados publicos, militares e artistas contão receber mensamente uma quantia certa pelo seu trabalho, e desta feita a divisão para as precisões da vida, impossivel é na actualidade fazer doce receita com a despeza; como pois se pretende impor mais este acrescimo em suas habitações! Quer-se por ventura que a classe pobre sugeite-se a morar em cortiços como abelhas? Não será admissivel que o pobre possa ter sua commodidade? Dizem os senhorios que o augmento dos alugueis das casas provem de ter havido accrescimo na decima das mesmas. Se esta é a razão primitiva para tal augmento, desde já me antecipo a pedir a S. Ex. o Sr. ministro da fazenda que, em attenção ao estado deploravel do pobre, se digne modificar esta imposição nas casas cujos alugueis não excederem de 20$00 a 25$oo, pois justamente as que a classe pobre póde ocupar, p.2)par." (O que será do pobre", Correio Mercantil. Rio de Janeiro, 25 nov.).

Nove anos depois, Dr. Antônio Corrêa de Sousa, em sua tese de concurso para cadeira de hygiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, escrevia:

"Não é no centro da cidade (Rio de Janeiro), sobretudo da cidade velha
que habitam individuos, que merecem a denominação de pobres; nesses
lugares , centro da actividade e do commercio, as habitações, posto que
geralmente detestaveis, são de preços de tal meneira fabulosos, que a
classe pobre não comporta. É pois nos lugares um pouco affastados do
centro da cidade que residem os pobres livres. As casas que habitam são geralmente de acanhadas dimensões, baixas,
edificadas ao nivel do solo, e munidas de um pequenissimo numero de
janellas; muitas vezes são destituidas de assoalho e tem por cobertura a
telha.
A par destas habitações outras existem, ainda mais prejudiciais á saude
pública pela preterição a mais completa de todas as regras hygienicas na
sua construcção e pela circumstancia da agglomeração de individuos.
Queremos fallar dos cortiços, isto e, de compridas casas, singularmente
divididas em um sem numero de cubiculos estreitos e escuros, onde existem
accumuladas muitas pessoas.
Há uma parte de nossa população pobre, que fugindo do centro da cidade
onde as casas estão caras, vão habitar os arrabaldes ou mesmo montanhas
situadas no coração da cidade. Estes, com quanto não achem nas casas as
condições satisfatorias de salubridade, estão todavia em melhores circumtancias de que outros." (Costa, “Qual a alimentação que usa a classe pobre do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1865,pp30-1)”

Diante desse quadro, podemos perceber uma realidade plena de dificuldades para os mais pobres, que conviviam com a precariedade da pobreza sem nenhuma qualidade de vida básica, uma contradição diante da riqueza que circulava na Corte. Foi o inicio do surgimento dos inúmeros complexos de favelas que existem atá hoje no Rio de Janeiro.
Contrapondo-se ao discurso da imprensa e dos deputados, nas sessões realizadas do parlamento de 1859 e 1860, Soares demonstrou através de seus estudos, 24 artigos que escreveu baseado em documentação oficial e publicados no Jornal do Commércio (Rio de Janeiro) de 21/01/1860 á 29/05/1860, quando argumentou brilhantemente a favor da economia do Brasil, comprovando que esta não caminhava para um "abismo", conforme afirmavam os deputados. Seus argumentos, irrefutáveis, calaram no espírito público, restabelecendo a confiança dos bancos estrangeiros, principalmente o inglês, no Império do Brasil. Esse fato pode ser constatado observando-se os empréstimos públicos, realizados com grandes vantagens para o Brasil, que foram contraídos em Londres, nos anos de 1860 e 1863. (apud Vitorino, p. 97, nt. 196). No decorrer de sua narrativa, Soares se posiciona varias vezes e duramente contra a escravidão, classificando tal prática como um erro de consequências nefastas para o futuro do país (SOARES, pp.6).
Ao contrapor esta versão, Sebastião Soares considerava que a carestia era fruto da especulação dos atravessadores, e estava inserida no âmbito mais geral das mudanças que influenciaram na configuração inicial do mercado interno brasileiro, após a proibição do tráfico de africanos. Soares, ao longo de sua obra, apresenta diversas tabelas, como esta abaixo, numa demonstração do crescimento do comercio geral de importação e exportação, relativa aos exercícios 1854-55 e 1863-4:

Demonstração do commercio geral e especial das diversas províncias do Império do Brasil nos exercícios de 1854-55 e 1863-64

Ordens
Províncias
1854 – 1855
1863 - 1864
1ª ordem
Rio de Janeiro...................
Pernambuco......................
Bahia................................
Rio grande do Sul............
114.934:000$
27.418:000$
28.277:000$
15.726:000$
150.797:000$
52.383:000$
40.371:000$
22.538:000$
2ª ordem
Maranhão.........................
Pará..................................
São Paulo........................
Alagoas
Parahyba
Ceará
6.031:000$
9.325;000$
       10.044:000$
2.8658:000$
2,347:000$
2.232:000$
14.993:000$
13.513:000$
17.826:000$
10.434:000$
9.310:000$
6.160:000$
3ª ordem
Sergipe
Paraná
Santa Catharina
R. Grande do Norte
Piauhy
Espirito Santo
1.377:000$
2.868:000$
1.368:000$
  372.000$
258:000$
139:000$
4.949:000$
3.338:000$
2.096:000$
1.902:000$
1.493:000$
1.214:000$
4ª ordem
Mato Grosso
Amazonas
Minas Gerais
Goyaz
1.309:000$
1.000:000$
8.760:000$
3.050:000$
1.931:000$
2.031:000$
10.3000:000
4.500:000$
Províncias marítimas
Províncias do Interior
225.642:000$
14.200:000$
353.982:000$
18.983:000$

As regiões vão se transformando e seguindo o ritmo ditado pelos grandes latifúndios. Algumas prosperavam outras não; as populações flutuante, formadas de trabalhadores livres e escravos, deslocam-se em busca de trabalho, influenciando deste modo o desenvolvimento das regiões.
No Mato Grosso o aumento dos preços foi provocado pelo aumento demográfico devido à afluência de criadores de gado para aquela província, que para comercializar suas rezes e carne defumada e salgada, utilizavam a navegação no Rio Paraná. Fornecia desse modo o charque para o Rio de Janeiro e outras localidades, causando prejuízos na região de origem, pois essas mercadorias passaram a faltar e a ter seu preço elevado. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 9 jan. 1859, pp. 1-2).
Minas Gerais teve aumento em sua população, sofrendo com a carestia e problemas com o clima, porem o fator que influenciou, neste caso, foi a retirada de braços trabalhadores na lavoura e a inserção destes no trabalho em obras públicas. O encarecimento da carne bovina e suína, devido ao aumento da demanda, as condições climáticas nesta região foram os fatores agravante da escassez de alimentos e o encarecimento dos diversos itens de primeira necessidade (MARTINS, ”Estudos Econômicos”, 13(1): 181-209 jan./abr. 1983).
Nas regiões ao sul do Império, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os aumentos de preços ocorreram de forma mais branda e a causa que se encontra, nestes casos, apontam que o aumento decorreu da grande quantidade de alimentos enviados para outras regiões, tornando-se os maiores fornecedores de farinha e outros cereais para a Corte, no Rio de Janeiro (SOARES, op. cit., p. 19).
            Configurando uma única região, as províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro remanejaram os braços escravos para a grande lavoura, direcionados para a produção de café, açúcar e aguardente, que eram mercadorias com lucro certo, e passaram a comprar os gêneros para consumo próprio de outras províncias. O encarecimento dos alimentos provinha também do alto custo dos transportes das mercadorias da província produtora para os mercados de consumo interno. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 5 fev. 1856, pp. 1-2)
            No período de 1839 a 1864 a produção dos principais itens de exportação experimenta enorme crescimento de produção, como podermos ver na tabela abaixo:

ARTIGOS
Aumento anual de produção (%)
Total do periodo (%)
Café
9,94
46,16
Assucar
2,92
4,35
Algodão
40,46
41,64
Couros
5,73
8,73
Fumo
18,93
25,59
Gomma elástica
61,48
86,07
Mate
17,29
25,80
Cação
9,04
10,68
Aguardente
0,38
1,23
Fonte: SOARES, Sebastião F. Elementos de Estatística, Tomo I, 1865: Typographia Nacional, Rio de Janeiro.

Sebastião Soares justifica seus argumentos de que a extinção do tráfico negreiro não significou a diminuição de braços para trabalhar a lavoura. Afirma que houveram diversos deslocamentos de mão de obra das pequenas para as grandes lavouras, o que resultou realmente em falta de braços para produção interna, porem, de acordo com nosso autor, não foi esse nem único e nem o principal responsável pela carestia no país Brasil. Em diversos momentos encontramos sua preocupação em provar, com números em mãos, que essa informação era distorcida e não procedia de fatos reais. Suas análises comparativas da exportação do café entre a época que havia o tráfico negreiro e após a cessação do mesmo, confirmam suas afirmações.

Exercícios
Quantidades
Valor exportado
1840-1841
5,059,223 @
17,804:000$
1841-1842
5,565,325@
18,396:000$
1842-1843
5,897,555@
17,091:000$
Termo médio
5,507,367@
17,730:300$
1843-1844
6,294,282@
17,986:000$
1844-1845
6,229,277@
17,508:000$
1845-1846
7,304,582@
21,307:000$
Termo médio
6,519,380@
18,933:600$
1846-1847
9,747,730@
21,971:000$
1847-1848
9,558,141@
25,159:000$
1848-1849
8,600,032@
21,513:000$
Termo médio
9,301,967@
22,881:000$
1849-1850
5,935,770@
22,838:000$
1850-1851
10,148,263@
32,604:000$
1851-1852
9,544,858@
32,954:000$
Termo médio
8,542,965@
29,465:300$
1852-1853
9,923,983@
33,897:000$
1853-1854
8,698,036@
35,444:000$
1854-1855
13,027,524@
48,491:000$
Exercícios
Quantidade
Valor
Termo médio
10,549,847@
39,227:300$
1855-1856
11,651,806@
48,013:000$
1856-1857
13,026,299@
54,107:000$
1857-1858
9,719,054@
43,502:000$
Termo médio
11,465,719@
48,540:600$
Demonstração do café exportado nos exercícios de 1840 á 1841 e 1857 á 1858, compreendendo uma época anterior e outra posterior á cessação do tráfico de africanos (SOARES, pp.28)

Termo médio
Exercicios
Quantidade
1841-1843
5,507,367@
1844-1846
6,519,380@
1847-1849
9,301,967@
1850-1852
8,544.858@

Comparação
O 2º mais que o 1º
1,012,013@
O 3º mais que o 1º
3,794,600@
                   O 4º mais eu o 1º
3,037,491@
  O 4º menos que o 3º
757,109@

Com estas tabelas, constatamos o aumento constante da produção do café, tanto quando era permitido o trafico, como depois da proibição, “porque a logica dos números não admite outras observações mais que as das equações que a firmão em suas demonstrações (Soares, pp.29).
O autor enfatiza a “principal fonte de riqueza do Brasil, a agricultura” (SOARES, pp. 11), e dados que confirmam que a cessação do tráfico não interferiu a ponto de prejudicar a produção agrícola, sendo a carestia resultado de outros fatores.
Na segunda metade do século XIX, o Brasil é impulsionado rumo a grandes transformações.  Os reflexos destas transformações foram sentidas em todo território, integrado a principio pela escravidão, e agora pelas redes de abastecimentos regionais que se formavam. Os deslocamentos de mão de obra escrava para as obras públicas e grandes lavouras garantia a produção dos gêneros para o mercado externo, e o mercado interno era prejudicado, devido à falta de planejamento e administração dos produtores, causas indicadas por Soares em sua obra:
“(...) a imprevisão dos nossos grandes agricultores – que em procura de interesses immediatos desprezarão a cultura dos generos mais necessário à           vida,    e que fazião a fartura de nossos conterrâneos. (Soares, Sebastião Ferreira; Notas Estatísticas sobre A Produção Agrícola: Carestia dos Gêneros Alimentícios no Império do Brasil, 1860, p.24).

O Rio de Janeiro, principal cidade e centro comercial do Brasil após 1808 (Soares, pp. 198), tem um aumento significativo da população, ocasionando aumento de consumo dos produtos importados e nacionais, produzidos em diversas regiões. As relações mercantis internamente ligava as províncias, sendo o Rio de Janeiro o centro para onde a maioria dos produtos convergiam e por isso, incentivavam a produção para o consumo interno. Desde o século XVIII, com o desenvolvimento da mineração, e depois a lavoura, as relações comerciais entre mineiros, agricultores e comerciantes inaugurou a rede interna de abastecimento, sendo a principal delas a que ligava o sul e o sudeste da colônia. A paisagem era propicia à criação de gado vacum, cavalar e muar e este se torna um setor que atrai investimentos, na segunda metade do século XVIII (MARCONDES, p.41).
A pecuária, juntamente com a cafeicultura, assumem grande importância tanto para o mercado externo, no caso do café, como o interno, o comércio das carnes verdes faz desse produto um termômetro que regula o preço de outros itens de consumo. Esses mercados passam a se desenvolver de acordo com as necessidades regionais e intraregionais, para depois configurar-se numa completa rede de abastecimento.
O porte do comércio de abastecimento interno foi descrito por Auguste de Saint-Hilaire em 1816, dando destaque também para as tropas e o gado:
“As estradas vizinhas da capital do Brasil são hoje em dia tão movimentadas como as que conduzem às grandes cidades da
Europa. Durante umas duas léguas não deixamos de encontrar homens a pé e a cavalo, e negros que conduziam descarregados os cargueiros que pela manhã haviam levado à cidade com provisões; rebanhos de bois, e varas de porcos, tocados por Mineiros, avançavam lentamente, fazendo voar turbilhões de pó (...).(SAINT-HILAIRE, 1975b, p. 36, apud Marcondes, p. 47).

O transporte de mercadorias entre São Paulo e Rio de Janeiro, em 1770, foi facilitado pela construção da estrada que ligava a freguesia de Piedade à Fazenda Santa Cruz, tornando-se uma via de acesso melhor que à trilha do gado que antes existia (MARCONDES, p.43).

ANO
VALOR ARRECADADO
NÚMERO DE RESES
1801
1802
1803
1804
1805
1806
1809
1810
1811
Total
          69$920 874
544$560
664$800
690$480
476$160
613$000
973$280
1:072$720
1:093$680
6:198$600
874
6.807
8.310
8.631
5.952
7.663
12.166
13.409
13.671
77.483

Fonte: AESP, Ordens 335 e 336 - Obs: A arrecadação de 1801 compreende apenas o mês de dezembro. A partir de fevereiro de 1805 até o final do ano de 1806 tem-se apenas o informe do total da receita sem a discriminação por pessoa que pagou a taxa. Por fim, em 1811 acrescenta-se a importância de 139$760 réis referentes a 1.747 reses que passaram pelo caminho novo sem guia, mas cuja taxa cobrada consta no registro pertencente ao sargento-mor Ventura José de Abreu e outros lançados à parte por faltar a guia, mas com taxa cobrada no registro.

Ao mesmo tempo identificamos a ação de monopólios e cartéis atuando neste contexto . De acordo com a tabela abaixo:
   
 FAIXAS DE TAMANHO
DO REBANHO
POR NEGOCIANTE

NEGOCIANTE

NÚMERO DE RESES


Número
%
Número
%
  1 a 9 animais
101
58,4
5.538
8,6
100 a 999 animais
61
35,3
14.707
22,8
1000 ou + animais
11
6,3
44.346
68,6
Total
173
100,0
64.591
100,0
Fonte: AESP, Ordens 335 e 336.

O comércio de gado concentra-se nas mãos de uma elite mercantil; os comerciantes, 58,4% conduziram apenas 8,6 % dos animais transportados, enquanto 6,3 de negociantes conduziram (68,6%), mais da metade dos animais (MARCONDES, p.56).
Surgem os negociantes e “reguladores” do comércio de gado, senhores de terras, famílias com tradição no comércio, que não criavam a quantidade de animais que negociavam. Especuladores que acumularam recursos suficientes com o negocio do gado, passam a atuar na agricultura produzindo café, tornando-se sua principal ocupação. Donos de terra e bens vultosos, tornam-se cafeicultores muito bem sucedidos, e aumentam cada vez mais seus patrimônios (MARCONDES, pp.61).
Muitos investiram na criação de gado. A partir de 1852 o preço da carne verde, seguindo a lei da demanda, aumentou e despertou a possibilidade de lucros maiores aos produtores. Devido à procura, pelo menos boa parte dos lavradores passou a se dedicar a essa cultura em maior escala. A ponto dos agricultores concentrarem nesta produção todos os seus esforços, em detrimento de outros produtos para o próprio sustento da família e dos trabalhadores. Adotaram o falso raciocínio de que poderiam comprar o que necessitassem com os grandes lucros da produção pecuária e cafeeira, assim como outros produtos também exportados. O comércio da carne fez acumular imensas fortunas, à custa da geração de miséria para muitos.
“O grande comerciante não se envolvia diretamente no transporte e venda dos animais. As informações levantadas a partir dos relatos dos viajantes permitiram perceber a larga utilização de capatazes e prepostos para o manejo e a venda do gado. Este fato aponta para a presença de estruturas de comercialização mais complexas e, como se verá adiante, de grandes comerciantes de gado para o Rio de Janeiro, que detinham uma parcela significativa dos montantes transacionados (MARCONDES,pp.54)

Ao final do século XIX , no Brasil os ex-traficantes de escravos tornaram-se donos de terras , assim como comerciantes, membros da elite brasileira que influenciavam as politicas públicas, que prosperavam com as exportações monoculturas de café e algodão e também com a pecuária . Aqueles que eram donos do capital nacional buscaram a melhor maneira de investir seus recursos, muitas vezes no mercado internacional visando maior lucro. São formuladas as politicas econômicas, que vão intermediar os interesses dos investidores.
Por outro lado, produtores de diversos itens excedentes, com as mudanças na produção, continuam a consumir o que não mais produziam, e o resultado previsível: os preços tiveram altas significativas. Nas regiões onde os lavradores não abandonaram o cultivo de alimentos, a carestia não se manifestou na mesma intensidade. A produção não aumentou nem diminuiu, apenas os preços elevaram-se devido à grande procura. Interessa-nos também neste tema, apontar o Rio de Janeiro como escoadouro da produção interna brasileira, mesmo após a partida da Corte, mantendo-se como centro financeiro do Império.
A tese de doutorado de Juliana Teixeira de Souza , “A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-1889) - Campinas, SP: [s.n.], 2007”, nos traz informações, expondo as etapas da formação administrativa brasileira, ainda não estando definidos claramente os setores de atuação das diferentes esferas públicas, suas atribuições e as sobreposições, não podemos perceber de imediato qual o limite de atuação dos poderes imperial e municipal.
A postura adotada pela Câmara Municipal, nesse momento, demonstra sua orientação pela visão tradicional referente a regras e deveres sociais subentendidos, que haveriam de ser aceitas e cumpridas por cada setor da sociedade, ao utilizar o termo:                                  “[...] porque crime se deve imputar aquele que especula sobre a fome de seus   semelhantes” (THOMPSON, E. P. Costumes em Comum, p. 152. Apud. Teixeira, p.53) .
Teixeira faz alusão ao conceito de economia moral, elaborado por Thompson ao realizar suas analises sobre os cercamentos na Europa, porem tal conceito não cabe ao caso do Brasil, pois não havia uma herança ou economia moral em comum para ser evocada pela população brasileira. Não há evidencias de nenhum movimento organizado e direcionado para algo que não fosse estritamente essencial, imediato e regional. Não havia consciências politizadas, havia carência de gêneros básicos para a sobrevivência, os alimentos. Estavam todos sob o que Marx chamaria de “lei da miséria crescente” (Marx, O Capital, Tomo 3).
A gestão do poder vigente seguia moldes ultrapassados, que não respondiam satisfatoriamente diante das demandas e estas pediam a elaboração de leis, regulamentações, que foram sendo formuladas de acordo com o momento, de modo a atender os diversos interesses envolvidos na questão. Vejamos as considerações sobre a carestia de alimentos do vereador Dr. Domingos de Azeredo Coutinho Duque Estrada, em 1859 na Câmara Municipal :
Sala de Sessão da Ilustríssima Câmara aos 17 de Março de 1859.
“Dentre as calamidades que afligem os povos, é sem dúvida alguma a fome aquela que mais eles se ressentem, e por conseqüência também aquela que mais deve merecer a atenção dos governantes e toda a sua solicitude no intuito de remediá-la. A fome desvaria o povo e o arrasta a um milhão de desatinos, cujas conseqüências são sempre funestas. O clamor público nesta capital vai se alteando de dia em dia contra a carestia dos gêneros de primeira necessidade.
Todos os gêneros têm subido de preço, fabulosos pelo culposo espírito de ganância dos atravessadores e monopolistas. O povo clama, e menos justo em suas queixas, por mal informado certamente, censura-nos e tacha-nos de indiferentes na persuasão de que, ao alcance da Câmara Municipal se acham os meios de remediar o mal! Pobre Câmara Municipal que tão moribunda estás! Tão cercada em suas atribuições, que apenas te resta hoje o teu foro de Ilustríssima, e direito de dar licenças para obras particulares, e isso mesmo enquanto não vier quem entenda mais conveniente cometer tal atribuição à diretoria das obras públicas, ou à Academia de Belas Artes! Mas embora reduzidos a um irrisório simulacro do antigo Senado e quase totalmente nulificados, somos nós ainda, Senhores, os denominados representantes da Municipalidade, e pois que o somos, aproveitamos os tristes restos do lampejar de nossa existência para alguma coisa fazermos a bem dos nossos constituintes.
Proponho-vos, que se dirija por mais uma vez ao Governo Imperial uma representação pedindo todas as providências possíveis tendentes a aniquilar o sofrimento do povo pela carestia das carnes verdes e de todos os outros gêneros ditos de primeira necessidade. Dr. Duque Estrada.” (AGCRJ, Gêneros Alimentícios, cód. 59-1-45, 17 de março de 1859, apud. Teixeira, p.75).
A era do capitalismo inicia-se no Brasil a partir de dois marcos principais: A Lei de Terras (18/09/1850), destinada a manter os latifúndios (VITORINO, p.40), e a Lei Euzébio de Queiroz, que proibiu o tráfico de africanos (VITORINO, p38, nt.56). Com a Lei de Terras criou-se a dificuldade de acesso; pequenos proprietários foram sendo expulsos ou integrados aos grandes latifúndios, sendo afastados da propriedade e dos meios de subsistência por não possuírem os recursos para aquisição da terra, agora mercantilizada. Isso gerou renda aos grandes proprietários, e garantiu a estrutura necessária para o desenvolvimento capitalista. Também a questão da escravidão foi vista sob essa nova ótica. Com a proibição do trafico, o preço do escravo teve uma alta de 155,6 % entre 1845 e 1855 (BUESCO, 1970, p. 245). Acabar então com o trafico tornou-se a melhor opção e claro, sob o arranjo de diversas negociações, o capital destinado ao tráfico é reconvertido para obras de infraestrutura. O Estado sinalizava aos donos do capital a necessidade de investimentos no mercado, oferecendo garantias de preservação dos latifúndios, já que o negocio do trafico havia acabado, e desse modo garantir retorno dos investimentos destinados ao desenvolvimento estrutural das regiões abastecedoras do mercado externo e interno, acelerando os negócios e gerando maior lucro. (Vitorino, p. 40).
Ocorreu a emigração de uma parte do capital do trafico com a deportação de traficantes por ordem do ministro da justiça Euzébio de Queiros. Mesmo sendo contra o comércio de “carne humana”, Soares repreende o governo brasileiro por:
...determinar a deportação dos principais negociantes negreiros, que por denuncias e reclamações dos diplomatas inglezes, se dizia que tentavam ainda recomeças no trafico dos Africanos; porque de tal medida resultou sahirem do país grandes sommas; que por certo aqui terião ficado para auxiliarem as nossas indústrias, augmentando a riqueza nacional” (Cf. Soares, Esboço, ou primeiros traços da crise commercial da cidade do Rio de Janeiro, em dez de setembro de 1864, E & H Laemmert, 1865, p.30).
Os desvios de mão-de-obra para as grandes fazendas, assim como para o trabalho nas ferrovias e estradas de rodagem, refletiram diretamente na produção. Nos lugares onde não houveram obras e vantagens financeiras para os trabalhadores, mais que suas pequenas colheitas, a agricultura seguiu no mesmo ritmo.
O capital antes retido no comercio de escravos foi direcionado para outros setores, tais como: a formação das sociedades anônimas, operações de importação e exportação, financiamentos de empresas que trariam o desenvolvimento do Brasil, como transportes, por exemplo e em diversas transações bancárias. Em 1852, o capital investido no setor de transportes, privilegiou o governo na construção das estradas de ferro no Rio de Janeiro e Minas Gerais, assim como também a navegação dos rios Mucuri e Amazonas. A grande soma de dinheiro que passa a circular, permite a articulação de cartéis e monopólios nos diversos setores, fato eu interfere de modo negativo para a formação de uma rede nacional de abastecimento.
Soares denuncia o jogo de agiotagem e cartéis, como sendo também elementos causadores da carestia:
"Os lucros adquiridos sem grande trabalho naquela época despertaram a cobiça dos homens ambiciosos que tinham jogado nas ações dos bancos com grande proveito; e vendo essa mina exausta, cogitaram nos meios de formar um novo Eldorado, visto que a todo transe queriam enriquecer em pouco tempo, pelo que julgaram lícito todos os meios dos quais lhe pudesse resultar ganho imediatos. Eis a origem do monopólio, que ainda é mais imoral e reprovado que o jogo dos agiotas; porquanto este só prejudica a quem nele voluntariamente se envolve, e aquele vai ferir de morte a toda a sociedade, sacrificando o pobre trabalhador e sua misérrima família." (SOARES. p. 286-7).           
Mesmo sem garantias de lastro para crédito, o funcionamento de casas bancárias foi autorizado, promovendo desse modo um verdadeiro “carnaval bancário”, operacionalizando suas ações na praça comercial. Seu auge, em 1857, o jogo de créditos veio abaixo, quando ocorreu a primeira crise mundial capitalista. A Rússia retoma as exportações de cereais e pressiona a baixa de commodities em Nova Iorque. A repercussão da baixa de preços, sobrevinda nos EUA, refletiu na Europa, e logo em seguida no Rio de Janeiro e em outras praças comerciais, causando a quebra de diversos estabelecimentos financeiros. Os reflexos se sentem tanto nas provincias da Corte, assim como internacionalmente, um indicativo da participação efetiva do Brasil nas negociações internacionais. Paralelamente a tudo isso, as dificuldades encontradas pelos agricultores para concessão de crédito para a produção agrícola, prejudicam os pequenos produtores.
“Era o tempo de ganhar dinheiro a todo transe, tornando-se legítima a suspensão de todas as garantias da honra, do justo e do honesto; em que se podia sem escrúpulos violar os princípios da probidade, amizade e consciência.(Vitorino, 2007)
O crédito aos agricultores não atendia as reais necessidades de custeio dos instrumentos e maquinário para produção. A custa de muito sofrimento e privação, e arriscando-se a juros impraticáveis (18%) cobrados pelo banco, acrescido de mais juros, (12%), ao ano pagos aos comissários (Soares, 1865, Tomo I, p. 215, nota 8). Muitos agricultores perderam tudo, sendo conduzidos muitas vezes à miséria extrema.
Os obstáculos legais que o lavrador tinha que ultrapassar, muitas vezes eram intransponíveis. Era um trabalhador, mas seu trabalho não lhe servia de garantia e a complexidade no tocante aos bens de raiz, praticamente impedia o acesso do lavrador aos meios que poderiam melhorar sua vida. Sobre o financiamento a lavradores, o desembargador J. R. Brito diz:

“A demora dos processos, em virtude das dilatações fataes de outros termos creados pelas leis e inventados pela fraude, a incerteza dos julgamentos, as difficuldades que se levantão em sua execução, o trabalho, cuidados e amofinações que requer uma lide, ainda que por natureza seja simples, os gastos que absorvem as taxas a que estão sujeitos os processos civeis, são por certas razões ponderosas para que ainda com menores vantagens o capitalista prefira outro ramo de industria que não a lavoura para o emprestimo de seus fundos, ou que exija premios a juros excessivos que de algum modo compensem os riscos de seus capitaes.( Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 10 nov.   1853,p.2). 
A questão esbarrava no óbvio: quem executaria os devedores que pertenciam a uma classe privilegiada, por força das leis, ou pela posição que ocupavam em suas regiões? Não havia uma legislação especifica, nem estrutura de controle que dessem garantias que o lavrador honraria seu compromisso. Neste caso, apenas sua palavra não bastava. Isto se tratando da capital da Corte. Muito pior era a situação daquele agricultor que vivia nos locais mais distantes. Fraudes em empréstimos, além das dos cargos administrativos e judiciais, e as manobras politicas, garantiam sempre retorno do investimento. O controle sobre o capital exercido por um capitalista era absoluto, e diante disso o lavrador se via obrigado a provar a posse de bens que lhe pertenciam, o que era muito simples, nos antigos moldes, mas agora não. Não havia uma documentação que garantisse essa “propriedade” em favor do lavrador.
"póde por outro lado um mal epidemico ceifa-la [a escravaria], e o capitalista perder essa garantia e seus capitais. E não se esqueça que nem os nomes dos escravos, nem as providencias policiaes podem dar garantia contra a fraude; porque é sobremodo facil mudar aquelles e inutilisar estes, attenta a natureza e extensão do nosso territorio, e sobre exemplo de nossa propria lavra (...) "Reforma das alfandegas. XXVII. Obstáculos que encontra o crédito rural. § IV. Leis fiscaes, e impostos",Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,

(...) A lavoura tem pois necessariamente de se arruinar; os agricultores se achão no maior apuro; notão com immenso pezar que se os cofres publicos estao recheados, dahi não lhes vem o minimo proveito, lamentão do fundo da alma que parte desse dinheiro seja antes empregado em robustecer a sanguinolenta ferocidade de povos turbulentos, que sempre forão e hão de ser nossos eternos inimigos. ("A crise e a lavoura", Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 8 jun. 1858, p. 2.)

Conclusão
            O aprofundamento das questões sobre a carestia sofrida pela população brasileira no segundo quartel do século XIX, nos remetem ao panorama mais geral sobre as rupturas que ocorreram para a consolidação do capitalismo no Brasil. Diversas tensões se estabeleceram devido a pressões externas internacionais para a cessação do tráfico negreiro, assim como a pressões internas por parte das oligarquias dominantes, sempre no sentido de atender seus interesses. Verifica-se a carestia nos grandes centros devido às dependências de abastecimento interno provido por outras regiões. Nos locais onde a produção abastecia apenas internamente as províncias, a carestia não se manifestou de maneira tão acentuada como nas outras regiões.
Tendo como o centro o Rio de Janeiro, a rede de abastecimento e os mercados de consumo vão se consolidando de forma lenta, coexistindo com a escravidão; a circulação apoiada na agricultura, gerava renda aos grandes latifundiários, que migraram para esse ramo após a proibição do tráfico; entretanto, a maioria da população permaneceu na miséria. Outro ponto observado por Soares, foi a vinda de imigrantes, sendo que haviam tantas pessoas sem trabalho, vivendo de diárias e em circunstancias que comprometiam a própria vida, muitas vezes, de uma família inteira, principalmente em tempos de carestia (Soares, p.7).
Concluímos ser a carestia resultado dos arranjos e acertos políticos entre as elites dominantes, comerciantes e especuladores, no intuito de atender seus interesses e suas necessidades, relegando as causas sociais a um segundo plano. O preço a ser pago pelo Brasil por estas posturas de politicas imediatistas e de interesses, será o enorme atraso em seu desenvolvimento que, impedido por tais práticas, não acompanhou o crescimento no mesmo ritmo.
Com o fim do trafico de escravos e a mercantilização da terra, o cenário, o enredo e os atores políticos assumem novas características e constroem uma nova identidade dentro da nação chamada Brasil. As transformações nos modos de produção da vida atingem de forma cruel, principalmente os mais desfavorecidos, que sabiam lidar com a terra e apenas isso, e viam-se agora rumo ao desconhecido. A custa de muito sofrimento e muitas dificuldades, consolida-se o mercado de abastecimento interno e o mercado de trabalho , destinado à classe trabalhadora livre, oriunda de um sistema escravocrata e desigual, e imigrantes europeus, que chegam nos vapores em busca da prometida prosperidade no Novo Mundo. As grandes fortunas pessoais acumuladas neste período não foram acumuladas como riqueza nacional Esses e outros aspectos contribuíram para a formação das diversas identidades nacionais, tornando-se característicos e certamente influenciaram os novos projetos políticos, que surgiram como superação dos anteriores. Marcará profundamente a politica e a economia brasileira, estabelecida sobre estas bases.
           
Bibliografia

Fontes Impressas: Livros
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SOARES, Sebastião Ferreira. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp. 1860.
_______________________. Esboço, ou primeiros traços da crise commercial da cidade do Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1864.  Rio de Janeiro, E.  & H. Laemmert, 1865.
_______________________. Histórico da companhia industrial da estrada de Mangaratiba e analyse critica e econômica dos negócios desta companhia.  Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864.
SOUZA, Juliana Teixeira autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-1889) / --Campinas, SP: [s.n.], 2007.
VITORINO, Artur José Renda; Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte das décadas de 1850 a 1880 - Campinas, SP: [s.n.], 2002.

Fontes Impressas: Jornais
A Abelha, Rio de Janeiro.
Correio Mercantil, Rio de Janeiro.
O Cidadão, Rio de Janeiro.
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro.
Jornal dos Typographos, Rio de Janeiro.
O Moderador, Rio de Janeiro.

Bibliografia: Livros e artigos
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Trabalho de Iniciação Cientifica apresentado em Setembro de 2012 -
 Mirna Galesco Dias -  Historia do Brasil
 Orientador: Prof. Dr. Artur José Renda Vitorino -