quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O IMAGINÁRIO DO CRISTIANISMO PRIMITIVO: A CONSTRUÇÃO DO MITO DO DIABO


“Somos todos campos de batalha, nos quais se digladiam deuses.”
Paul Valéry

            Uma ideia, assim como um objeto, passa a existir no mundo material a partir do momento que é percebida e o quanto é real, ao considerarmos sua existência, e do diálogo possível que travamos com essa ideia. Chegamos ao cerne da mentalidade dominante de uma época, ao analisarmos fenômenos psíquicos no comportamento coletivo nas diversas épocas da história humana. Um diálogo entre o homem e sua mente.
            Traçar o caminho percorrido por um dos principais mitos da religião cristã, o Diabo, personagem antagônico à Deus, torna possível o vislumbre da época em que a construção deste mito tem sua origem. Seguindo as pegadas desse personagem no tempo, em busca da ideia primeira, até que se torne um conceito, nos damos conta de toda bagagem cultural contida nesse mito, que emerge na realidade medieval, se transforma no que representa nos dias atuais, e o que nele é contido  chega até o nosso tempo.
            Diversos autores dedicaram-se ao estudo desse tema. O inicio da construção do mito  arquétipo do diabo pode ser encontrado na literatura sagrada e profana, na arte e nas antigas civilizações. O Mal se apresenta como oposição ao Bem,  como os antagonismos, luz-sombra, belo-feio, bom-mau. A necessidade do ser humano em entender e significar o mundo leva-o a categorizar para poder organizar e através do conhecimento, adotar e dominar técnicas que o ajudem a sobreviver num mundo hostil.  As primeiras exteriorizações dos pensamentos foram gravadas nas cavernas, demonstrando de certa maneira como o mundo era percebido pelos primitivos.  Externavam cenas cotidianas, como também a forma de culto ao desconhecido, orientadas pela duvida e o medo.
            O que provavelmente, naquele tempo, se tratava de doenças até então desconhecidas, era prontamente atribuído ao poder maligno do inimigo de Deus. Muitas referencias à obsessões por maus espíritos encontra-se relatado constantemente e definido como ações negativas ou mesmo malignas, são a expressão que mais representam o que seria o Bom, o Bem e o Mal no contexto onde são produzidos Nosso trabalho parte da obra “Tentações de Santo Antão” - “Vita Antonii”, publicada em 357 d.C. por Atanásio, bispo de Alexandria.
            A obra as “Tentações de Santo Antão” é elemento de extraordinária importância para a compreensão do universo de representações do cristianismo medieval; exemplo disso é a forma recorrente como ele é citado na iconografia e na literatura religiosa do medievo e na arte renascentista. Bosch representou o tema numa de suas mais famosas pinturas a óleo, que inspirou pelo menos outras 16 reproduções renascentistas (FRIEDLANDER, p. 99-100); Santo Antão foi ainda retratado por Pisanello, Piero di Cosimo, Sassetta, Diego Velásquez e Grunewald, entre outros.
            A “Vita Antonii”, publicada em 357 d.C. por Atanásio, bispo de Alexandria, é uma das obras fundadoras da hagiografia (descrição da vida dos santos) cristã; o sucesso do livro foi um dos principais responsáveis pela rápida disseminação das práticas monásticas por todo o mundo cristão, a ponto de o monasticismo tornar-se uma das expressões mais fundamentais do cristianismo medieval.
            O eixo principal do relato de Atanásio é a luta do eremita contra o demônio. O demônio retratado pelo bispo Atanásio atende a uma função essencialmente pragmática: ele é um eficiente recurso de combate aos cultos pagãos. O livro é escrito poucos anos após o breve governo do imperador pagão Juliano (361-363 d.C.); o paganismo goza ainda de imensa influência e popularidade, a despeito dos interditos imperiais proibindo os cultos desde 357 (o Serapeum de Alexandria, por exemplo, um dos principais templos de Isis no império, funcionará até ser destruído em 391, após uma violenta revolta dos pagãos). Atanásio está preocupado principalmente com as crenças populares de que os ídolos e imagens dos deuses pagãos possuem poderes mágicos; o relato trabalha eficientemente essa questão: longe de negar a capacidade mágica das imagens, Atanásio a atribui aos poderes demoníacos. Esse discurso realça então a superioridade mágica do cristianismo: o próprio fato de que um cristão destrua um ídolo sem ser molestado pelos “demônios” funciona como prova de que o novo culto tem poderes mágicos mais eficientes.
         O objetivo deste trabalho é analisar o processo de construção da figura do diabo no corpo doutrinário e no imaginário popular do cristianismo primitivo a partir da obra “Vita Antonii” de Atanásio. Nossa análise considera as motivações do autor e o debate em torno da significação dos recursos literários utilizados, considerando tanto suas influências - as biografias de personagens ilustres tão em voga no mundo greco-romano, ou o hábito de os escritores clássicos colocarem na boca de seus heróis sermões ou discursos que retratam os pontos de vista do autor - quanto sua significação e propósitos; o debate entre historicidade do relato e construção do relato como peça propagandística das ideias doutrinárias do bispo Atanásio interessa-nos, sobretudo em relação ao tema de nosso estudo, a imagem do demônio. Pelo menos um quarto da obra versa exclusivamente sobre demonologia.
      O bispo Atanásio é um dos principais adversários das ideias de Ário, também bispo de Alexandria nos primeiros tempos do cristianismo primitivo, que concebia o cristianismo a partir de uma lógica racional pautada e influenciada pela estrutura mitológica da Grécia. Para Ário, Jesus e Deus não eram a mesma divindade porque Jesus, ao se fazer homem, perdeu a substância (Aristoteles, unidade indivisível de matéria e forma), puramente divina, tornando-se um semideus, entre outras ideias que o levaram a ser expulso do ambiente eclesiástico e viu sua tese condenada como “a heresia ariana.” Quando o cristianismo ortodoxo-romano tornou-se a religião do Império a situação foi resolvida e o movimento liderado por Ário foi perseguido, e por este motivo foi, aos poucos, desaparecendo. Tempos depois, na Polônia, a irmandade polaca, “Frater Polonorum” resgata o termo “Arianos” em referencia a uma seita Cristã Unitária, e suas teorias preconizaram o Iluminismo.
    Nosso específico é buscar na obra trechos que possam identificar um processo de demonização de elementos da cultura pagã greco-romana, da filosofia neoplatônica e da santificação da religiosidade hebraica.
     O Cristianismo surge a principio de forma tímida, dentro do judaísmo e do helenismo. O apóstolo Paulo de Tarso, romano-pagão convertido ao cristianismo, não conheceu Jesus pessoalmente, e a partir do seu próprio entendimento lançou as bases do cristianismo de nosso tempo. Segundo Paulo, a fé na salvação rompe com o ciclo do eterno retorno, crença dos povos que viviam segundo as leis da natureza, e interpretavam o mundo desse modo. Essa pequena modificação tornou a nova doutrina capaz de atender melhor a principal necessidade anunciada pelo clero daquele tempo: a salvação. A crença no retorno de Jesus mostra-se também essencial para a formulação do cristianismo. Entretanto, a igreja deixou de afirmar a “derrota” do inimigo, para justificar sua própria existência (Nogueira, p. 41).
    A sobreposição do cristianismo ao paganismo não afetou imediatamente a mentalidade camponesa da época. O culto ás forças naturais foram sendo substituídos, integrados e canalizados para a nova religião. Em um determinado momento, as ações do demônio cristão se iniciam na vida daqueles que estariam a salvo, em sua antiga crença. Passam, a partir de então, a precisar de “salvação”!
     Articular uma ideia à realidade sugere representações desta mesma ideia. Na fundação do cristianismo, o universo simbólico que se constrói é fincado no imaginário coletivo e suas formas de manifestação são as mais diversas. O povo hebreu, na origem do judaísmo, não personificaram uma figura maligna, não havia necessidade da “encarnação” do Mal. Reconheciam a superioridade de seu Deus em relação aos outros deuses, de outras tribos, e um poder insignificante é atribuído ao Mal, e as referencias a ele são poucas no Velho Testamento e na Torá dos judeus. Isto devido ao esforço do judaísmo em manter seu monoteísmo, tendo esse esforço justificado pela lei mosaica, que proibia superstições para evitar que as tribos de Israel se envolvessem com a idolatria praticada por outros povos (Nogueira, p.14).

“Sob forma abstrata, os símbolos são ideias religiosas; sob a forma de ação, são ritos ou cerimonias. São manifestações e expressões do excedente da libido. Constituem ao mesmo tempo, degraus que levam a novas atividades que, especificamente, devemos chamar culturais, para distingui-las das funções instintivas que seguem seu curso regular, de acordo com as leis da natureza (Jung, 1997, p. 45-46)”.

 Tanto Sigmund Freud, quanto Carl Gustav Jung discorreram sobre o tema “inconsciente”, sendo que para Freud o inconsciente é de natureza exclusiva. Freud chamou a psique instintiva como "id" e "superego" correspondências ao inconsciente coletivo, sendo em parte consciente e em parte inconsciente (reprimido) pelo individuo (Jung, 1997, nt. 1). Jung, no entanto, compreende o processo de outra perspectiva. Afirma a existência de um inconsciente coletivo, onde estariam registradas todas as atividades humanas, desde seu principio até nossos dias. Os arquétipos são conteúdos psíquicos do inconsciente coletivo. Nessa ótica entendemos o diabo originalmente, como uma possibilidade adormecida no mundo das ideias, que desperta ao ser invocado pela humanidade. Uma herança psicológica, que se alimenta de si mesma.
A construção do mito do diabo vai acontecendo lentamente, e a ele são atribuídas as causas do sofrimento humano. Na obra “Vida de Santo Antão” o discurso empreendido por Atanásio de Alexandria, visa demonizar o culto pagão e todas as suas práticas, em favor do cristianismo que apenas iniciava seu percurso histórico. Instituindo a pedagogia do medo (Nogueira, p.41), o movimento cristão vai se consolidando.
Desmontar, se apropriar e sobrepor o universo pagão foi o projeto sociopolítico da elite governante da época, Igreja. O diabo, neste contexto ganha importância indiscutível, assim como personalidade própria, tornando-se ao mesmo tempo uma representação de qualquer oposição ao domínio clerical.
Nossa análise parte do contexto histórico em que a obra é escrita (o bispo Atanásio está então em luta aberta contra o arianismo) “Tentações de Santo Antão” - “Vita Antonii”, publicada em 357 d.C. por Atanásio, bispo de Alexandria; as cartas do Apostolo Paulo no Novo Testamento; O Diabo no imaginário cristão, de Carlos Roberto F. Nogueira; e a metodologia analítica de Carl Gustav Jung, na compreensão do arquétipo do diabo.

“Uma existência psíquica só pode ser reconhecida pela presença de conteúdos capazes de serem conscientizados. Só podemos falar, portanto, de um inconsciente na medida em que comprovamos seus conteúdos. Os conteúdos [...] do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos (Jung).”

Nosso estudo preliminar sugere uma construção do diabo como eficiente peça de propaganda contra práticas pagãs ainda muito arraigadas entre as camadas mais populares da população, sobretudo a crença na eficiência mágica das imagens de deuses pagãos, substituídas pela imagem do mártir- santo cristão.  

Bibliografia das Fontes:

ATANASIO, Vida de Santo Antão, disponível em: http://www.salverainha.com.br/downloads/Atansio_Vida_de_Santo_Antao.pdf

JUNG, Carl Gustav; Texto publicado em português na obra de Carl Gustav Jung, “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.” – Petrópolis: Vozes, 2000. Páginas 13-50

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. “O Diabo no imaginário cristão”- 2ª Ed. – Bauru, SP: EDUSC, 2002 – Coleção História.




Bibliografia Geral / Específica

FRIEDLANDER, Max J. Die altniederländische Malerei. Leida: A. W. Sijthoff, 1937. 99-100 p. vol. XIV.

MANGO, C. 'Diabolus Byzantinus', A.Cutler and S. Franklin edd., Homo Byzantinus, Dumbarton Oaks Papers 46 (1992), 215-223.

COLOMBAS, GARCIA M., El monacato primitivo, T. I BAC 351, Madrid, 1974, 376 p.

BREMOND, JEAN, Los Padres del Yermo. Prólogo de Henri Bremond. Aguilar, Madrid, s.a., 510 p.

DRAGUET, RENE, Les Pères du Désert. Plon, Paris, 1949, 1 X - 333.

LAMPE, G.W.H., Patristic Greek Lexikon. Clarendon. Oxford, XLVII - 1568 p.

LORIE, L.T.H.A., Spiritual Terminology in the Latin Translation of the Vita Antonii (Latinitas Christianorum Primaeva XI). Dekker & van de Vegt, Nimega, 1955, XV - 180p.

MEYER, ROBERT T., The Life of Saint Anthony (Ancient Christian Writers, n. 10). The Newman Press, Westminster, Maryl., 1950, 130 p.

BASILII STEIDLE OSB Herder, Studia Anselmiana 38: Antonius Magnus Eremita. Roma, 1956, VIII - 306.

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