terça-feira, 19 de abril de 2011
Flores e Raízes
O ar estava parado naquela tarde. Paisagens passavam diante dos meus olhos e imagens corriam em minha mente. Estava de volta àquele lugar onde, durante minha infância, vislumbrava o futuro. Agora era o futuro. Podia sentir o cheiro da comida deliciosa e ouvir a voz da minha velha “nona”, cantarolando antigas canções da Itália.
Durante muitos anos, estive ausente, vivendo em outros lugares, lutando as batalhas da vida, procurando meu lugar no mundo. Conheci muitos lugares, mas nada para mim era tão conhecido como cada esquina daquela vila, a qual eu chamava de aldeia. Parecia nunca ter realmente saído dali. Por onde andei, um grande vazio espalhava-se à minha volta. Eu procurava não prestar muita atenção, afinal tinha saído atrás de sonhos, de ideais, e acreditava ser normal tal sensação, já que estava em busca de algo.
Não que eu tenha saído por livre escolha, e sim pela impossibilidade de continuar ali. A vida tinha ficado difícil, de repente, e eu não enxergava outra alternativa a não ser partir.
Lembro-me daquele tempo, quase trinta anos atrás, eu ainda adolescente e o inconformismo e, por que não dizer, uma certa rebeldia, causaram-me uma seqüência de dificuldades. E eu também acabara me tornando um incômodo para muitas pessoas.
Filha de uma família conservadora, onde há muitas gerações a palavra dos homens era lei, e eu, não sei bem porquê, resolvera desafiar os padrões estabelecidos. Lembro-me até hoje daquela voz horrível dizendo: “Ou segue as regras ou rua!”- E eu pensei: “Que ótimo, tenho uma segunda opção!”- E não pensei outra vez...
A década de setenta estava no auge, o mundo crescia rapidamente e eu não queria ficar de fora da “nova ordem”, da geração das Flores...
Assim, conheci outras garotas e garotos, que como eu, não estavam nem um pouco interessados e satisfeitos com as velhas regras. Resolvemos nos apoiar na máxima de que toda regra existia para ser quebrada. Éramos os contestadores, os pioneiros cheios de ideologias e certezas de que podíamos ser melhores do que aqueles “velhos” esperavam.
Não queríamos ficar ali parados, vendo a vida passar, e muito menos passar pela vida sem viver. Precisávamos conhecer gente nova, estabelecer contato, formar nossas opiniões, aprender uma nova religião, buscar um Deus que não fosse tão ditador e nem tão perverso como aquele que me fora apresentado nas missas de domingo. Queríamos respeitar e ser respeitados.
Eu havia lido em algum lugar que os patos domésticos se alvoroçavam vendo os patos selvagens fazendo algazarra e cortando o céu em seu vôo migratório. Eu era um pato selvagem e resolvi alçar vôo. E assim, voamos, cheios de esperança e muita garra, dispostos realmente a ter uma vida com muito mais opções do que haviam tido nossos pais, por exemplo. Éramos livres, e o mundo era nosso!
Não estava assim tão segura. Tinha dúvidas, tinha medo, mas tinha também a esperança de quem tem uma vida inteira pela frente. Não. Definitivamente eu não podia mais ficar ali. Lamentava deixar para trás pessoas importantes, como minha “nona”, mas no fundo dos olhos dela eu pude ler uma mensagem que ela jamais ousaria verbalizar: “Vá, filha, Deus te acompanhe e te abençoe.” Para mim, aquilo era o suficiente.
Andei, viajei, vivi. Os companheiros de viagem foram se dispersando. Alguns nem foram de verdade muito longe, muitos se perderam no caminho, outros se foram para sempre. E eu fiquei só.
Consegui quase tudo a que me propus. Mesmo assim, uma ponta de tristeza e a sensação de vazio sempre me acompanharam por todos aqueles anos. Mas agora, estava voltando a todo aquele cenário, e me sentia calmamente confusa com tanta emoção.
Como estaria minha aldeia hoje? Será que eu conseguiria reconhecer cada rua, cada praça e cada esquina que habitavam tão vivas as minhas lembranças? Talvez não. Muito tempo passou e tudo haveria de estar diferente. Não reconheceria e não seria reconhecida. A tristeza veio forte.
Entrei na vila, e comecei a caminhar. Não se viam mais os antigos casarões e seus jardins com roseiras bem cuidadas; nem mesmo as pequenas mercearias com os sacos de cereais nos balcões de madeira escura. Os rostos eram estranhos e todos caminhavam rapidamente, num transe, como se fossem formigas. Fui adentrando ruas, vielas e, nas pequenas travessas, a emoção já me dominava por completo.
Ali estava ela. A imponente igreja com sua torre majestosa. Enfim tinha sido terminada. Lembro-me de que costumava brincar a respeito daquela obra, que parecia não acabar nunca. Sentei-me num banco em frente a ela e a comtemplei. Ela não me assustava mais, não era para mim a casa do “Pai” que estava à minha espera para me aplicar um castigo. Ao contrário, ela parecia sorrir para me dar as boas-vindas. Recordei-me de um tempo em que eu, junto com tantas outras pessoas, passava algumas noites fazendo tapetes de serragem para a procissão de Corpus Christi; as quermesses, as missas no domingo de manhã, quando a “nona” nos tirava da cama e nos fazia ir lá receber a bênção, para voltarmos para casa e nos deliciarmos com seu talento culinário... Tinha sido uma bela infância, afinal.
Quantas histórias aquela velha igreja teria testemunhado? Minha própria história estava ligada àquele monumento, que no momento era tudo de familiar que meus olhos conseguiam ver. De repente, uma lembrança me despertou. Caminhei por cima das folhas que caíam naquele final de tarde, sentindo um ar fresco soprar em meu rosto, e pude me reconhecer em cada criança que brincava nas calçadas, em cada jovem com gestos e olhar rebelde, em cada mulher que gritava nos portões que a hora do jantar se aproximava. Vi a marca do tempo nos olhos dos velhos senhores de boinas, sentados em seus banquinhos, vendo o sol se por e a lua sair.
Como um passe de mágica, entrei naquela grande praça, a maior e mais antiga do lugar e puxando pela memória fui procurando e de repente... lá estava! A árvore que ajudei a plantar ainda na primeira infância. Uma sensação de felicidade e vitória me invadiu.
A pequena aldeia agora era uma grande cidade, e a pequena muda se tornou uma linda árvore. E eu me senti grande também. Corri a abraçá-la e senti a retribuição com a mesma alegria. Contei a ela mentalmente tudo o que vivi, que a minha vida não tinha sido fácil, nem melhor nem pior do que eu esperava. Apenas tinha sido, digamos, diferente do que os meus opressores poderiam me oferecer. E senti que ela me perguntou: “Você é feliz?” - Respirei fundo, o filme da minha vida passou diante dos meus olhos.
Num instante me dei conta que minhas dúvidas e meus medos também não estavam mais comigo. Eu havia vencido todas as ilusões: as boas e as más; assim como meus companheiros, elas haviam ficado em algum ponto da estrada por onde caminhei. Apenas e unicamente a esperança havia permanecido comigo, florescendo nos instantes mais importantes, enchendo meu futuro com suas flores e mantendo vivas as raízes do meu passado. Por ela me guiei quando parti e ela me trouxera de volta.
A luz da Lua se misturava com as luzes artificiais e iluminava tudo ao meu redor. Sorri por dentro. Estava em casa, na minha aldeia, a minha terra. Sim, pela primeira vez em muito tempo eu estava realmente feliz . (Myrna Moon)
" Conto vencedor, 1º Lugar na Biblioteca da Eubiose - São Thomé das Letras - 2008
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