terça-feira, 19 de abril de 2011

Flores e Raízes


O ar estava parado naquela tarde. Paisagens passavam diante dos meus olhos e imagens corriam em minha mente. Estava de volta àquele lugar onde, durante minha infância, vislumbrava o futuro. Agora era o futuro. Podia sentir o cheiro da comida deliciosa e ouvir a voz da minha velha “nona”, cantarolando antigas canções da Itália.
Durante muitos anos, estive ausente, vivendo em outros lugares, lutando as batalhas da vida, procurando meu lugar no mundo. Conheci muitos lugares, mas nada para mim era tão conhecido como cada esquina daquela vila, a qual eu chamava de aldeia. Parecia nunca ter realmente saído dali. Por onde andei, um grande vazio espalhava-se à minha volta. Eu procurava não prestar muita atenção, afinal tinha saído atrás de sonhos, de ideais, e acreditava ser normal tal sensação, já que estava em busca de algo.
Não que eu tenha saído por livre escolha, e sim pela impossibilidade de continuar ali. A vida tinha ficado difícil, de repente, e eu não enxergava outra alternativa a não ser partir.
Lembro-me daquele tempo, quase trinta anos atrás, eu ainda adolescente e o inconformismo e, por que não dizer, uma certa rebeldia, causaram-me uma seqüência de dificuldades. E eu também acabara me tornando um incômodo para muitas pessoas.
Filha de uma família conservadora, onde há muitas gerações a palavra dos homens era lei, e eu, não sei bem porquê, resolvera desafiar os padrões estabelecidos. Lembro-me até hoje daquela voz horrível dizendo: “Ou segue as regras ou rua!”- E eu pensei: “Que ótimo, tenho uma segunda opção!”- E não pensei outra vez...
A década de setenta estava no auge, o mundo crescia rapidamente e eu não queria ficar de fora da “nova ordem”, da geração das Flores...
Assim, conheci outras garotas e garotos, que como eu, não estavam nem um pouco interessados e satisfeitos com as velhas regras. Resolvemos nos apoiar na máxima de que toda regra existia para ser quebrada. Éramos os contestadores, os pioneiros cheios de ideologias e certezas de que podíamos ser melhores do que aqueles “velhos” esperavam.
Não queríamos ficar ali parados, vendo a vida passar, e muito menos passar pela vida sem viver. Precisávamos conhecer gente nova, estabelecer contato, formar nossas opiniões, aprender uma nova religião, buscar um Deus que não fosse tão ditador e nem tão perverso como aquele que me fora apresentado nas missas de domingo. Queríamos respeitar e ser respeitados.
Eu havia lido em algum lugar que os patos domésticos se alvoroçavam vendo os patos selvagens fazendo algazarra e cortando o céu em seu vôo migratório. Eu era um pato selvagem e resolvi alçar vôo. E assim, voamos, cheios de esperança e muita garra, dispostos realmente a ter uma vida com muito mais opções do que haviam tido nossos pais, por exemplo. Éramos livres, e o mundo era nosso!
Não estava assim tão segura. Tinha dúvidas, tinha medo, mas tinha também a esperança de quem tem uma vida inteira pela frente. Não. Definitivamente eu não podia mais ficar ali. Lamentava deixar para trás pessoas importantes, como minha “nona”, mas no fundo dos olhos dela eu pude ler uma mensagem que ela jamais ousaria verbalizar: “Vá, filha, Deus te acompanhe e te abençoe.” Para mim, aquilo era o suficiente.
Andei, viajei, vivi. Os companheiros de viagem foram se dispersando. Alguns nem foram de verdade muito longe, muitos se perderam no caminho, outros se foram para sempre. E eu fiquei só.
Consegui quase tudo a que me propus. Mesmo assim, uma ponta de tristeza e a sensação de vazio sempre me acompanharam por todos aqueles anos. Mas agora, estava voltando a todo aquele cenário, e me sentia calmamente confusa com tanta emoção.
Como estaria minha aldeia hoje? Será que eu conseguiria reconhecer cada rua, cada praça e cada esquina que habitavam tão vivas as minhas lembranças? Talvez não. Muito tempo passou e tudo haveria de estar diferente. Não reconheceria e não seria reconhecida. A tristeza veio forte.
Entrei na vila, e comecei a caminhar. Não se viam mais os antigos casarões e seus jardins com roseiras bem cuidadas; nem mesmo as pequenas mercearias com os sacos de cereais nos balcões de madeira escura. Os rostos eram estranhos e todos caminhavam rapidamente, num transe, como se fossem formigas. Fui adentrando ruas, vielas e, nas pequenas travessas, a emoção já me dominava por completo.
Ali estava ela. A imponente igreja com sua torre majestosa. Enfim tinha sido terminada. Lembro-me de que costumava brincar a respeito daquela obra, que parecia não acabar nunca. Sentei-me num banco em frente a ela e a comtemplei. Ela não me assustava mais, não era para mim a casa do “Pai” que estava à minha espera para me aplicar um castigo. Ao contrário, ela parecia sorrir para me dar as boas-vindas. Recordei-me de um tempo em que eu, junto com tantas outras pessoas, passava algumas noites fazendo tapetes de serragem para a procissão de Corpus Christi; as quermesses, as missas no domingo de manhã, quando a “nona” nos tirava da cama e nos fazia ir lá receber a bênção, para voltarmos para casa e nos deliciarmos com seu talento culinário... Tinha sido uma bela infância, afinal.
Quantas histórias aquela velha igreja teria testemunhado? Minha própria história estava ligada àquele monumento, que no momento era tudo de familiar que meus olhos conseguiam ver. De repente, uma lembrança me despertou. Caminhei por cima das folhas que caíam naquele final de tarde, sentindo um ar fresco soprar em meu rosto, e pude me reconhecer em cada criança que brincava nas calçadas, em cada jovem com gestos e olhar rebelde, em cada mulher que gritava nos portões que a hora do jantar se aproximava. Vi a marca do tempo nos olhos dos velhos senhores de boinas, sentados em seus banquinhos, vendo o sol se por e a lua sair.
Como um passe de mágica, entrei naquela grande praça, a maior e mais antiga do lugar e puxando pela memória fui procurando e de repente... lá estava! A árvore que ajudei a plantar ainda na primeira infância. Uma sensação de felicidade e vitória me invadiu.
A pequena aldeia agora era uma grande cidade, e a pequena muda se tornou uma linda árvore. E eu me senti grande também. Corri a abraçá-la e senti a retribuição com a mesma alegria. Contei a ela mentalmente tudo o que vivi, que a minha vida não tinha sido fácil, nem melhor nem pior do que eu esperava. Apenas tinha sido, digamos, diferente do que os meus opressores poderiam me oferecer. E senti que ela me perguntou: “Você é feliz?” - Respirei fundo, o filme da minha vida passou diante dos meus olhos.
Num instante me dei conta que minhas dúvidas e meus medos também não estavam mais comigo. Eu havia vencido todas as ilusões: as boas e as más; assim como meus companheiros, elas haviam ficado em algum ponto da estrada por onde caminhei. Apenas e unicamente a esperança havia permanecido comigo, florescendo nos instantes mais importantes, enchendo meu futuro com suas flores e mantendo vivas as raízes do meu passado. Por ela me guiei quando parti e ela me trouxera de volta.
A luz da Lua se misturava com as luzes artificiais e iluminava tudo ao meu redor. Sorri por dentro. Estava em casa, na minha aldeia, a minha terra. Sim, pela primeira vez em muito tempo eu estava realmente feliz . (Myrna Moon)






" Conto vencedor, 1º Lugar na Biblioteca da Eubiose - São Thomé das Letras - 2008

segunda-feira, 4 de abril de 2011

ATOS IMPUROS – A Vida de uma Freira Lésbica da Itália da Renascença



Introdução
A autora fazia pesquisas no Arquivo do estado de Florença para um manuscrito que estava escrevendo sobre a Pescia da Renascença quando encontrou um inventário de documentos cujos registros diz “Papeis relacionados ao julgamento da irmã Benedetta Carlini de Vellano, abadessa das freiras teatinas de Pescia, que se passava por mística, mas que se descobriu ser uma mulher de má reputação”.
Duas coisas chamaram-lhe a atenção, a primeira era o lugar de origem que era o mesmo do lugar sobre o qual ela estava escrevendo – Pescia da Renascença. Ela poderia colher informações adicionais sobre a cidade e seu povo, e, segundo e principalmente, a curiosidade por saber o que fizera essa freira para merecer palavras tão rudes do arquivista do século XX que tinha lido e feito o inventário do documento.
O documento de cerca de cem páginas consistia em uma série de investigações eclesiásticas ocorridas entre 1619 e 1623 sobre as visões e as proclamações místicas de Benedetta Carlini, abadessa do Convento da Mãe de Deus. As investigações continham, entre outras coisas, uma descrição detalhada de suas relações sexuais com outra freira, o que torna o documento único na Europa pré-moderna e inestimável para análise de áreas até agora inexploradas da vida sexual das mulheres, assim como dos pontos de vista da Renascença sobre a sexualidade feminina.
Alguns anos depois, as notas se transformaram em um livro.




Parte dois-
A Economia e Sociedade da Época

A narrativa relata a história de Benedetta Carlini, nascida no final do sec. XVI na pequena vila italiana de Vellano, próxima à Florença. As fontes documentais dessa história foram descobertas por um acaso e retratam a sociedade da Renascença em um contexto religioso, revelando a ocorrência de relações homossexuais entre mulheres, que eram ignoradas pelos europeus, pois eles não levavam em conta a atração entre mulheres.
Benedetta nasceu em uma família de situação relativamente estável do ponto de vista material. Seu pai era o terceiro homem mais rico entre os oitocentos habitantes de Vellano. Sua mãe era de família importante na região. Seu pai era um homem culto e erudito.
Como Benedetta teve dificuldades em seu nascimento, seu pai Giuliano, religioso, suplicou a Deus pela sua vida e como agradecimento pela graça alcançada lhe deu esse nome que quer dizer “abençoada”, dedicando-a ao serviço de Deus. Assim, Benedetta estava desde o momento de seu nascimento destinada a viver em um convento e se tornar uma freira.
As mulheres daquela época não tinham poder de decisão sobre as suas vidas; enquanto solteiras, eram totalmente manipuladas pela figura paterna e quando casadas, pelo marido. Sem alternativas, eram coagidas a um casamento arranjado ou a clausura num convento.
Para muitas mulheres, o convento poderia ser a melhor opção, considerando até as que não tinham vocação religiosa, isso porque como donas de casa jamais teriam o privilégio de se expressar de alguma forma e se submeteriam às vontades de seus cônjuges.  Para os pais, o convento também era um subterfúgio bastante atraente, pois sustentar financeiramente uma filha num convento seria uma despesa menor do que dar um dote para um casamento com alguém de prestígio. Uma freira da época chamava esse tipo de vida como “Inferno Monástico” ao qual as freiras eram condenadas pela tirania dos pais. No caso de Benedetta Carlini, o fato de ter visões e premunições sobrenaturais, facilitou a sua ascensão como abadessa do convento da Mãe de Deus das freiras teatinas da Pescia.
Os conventos da Europa estavam do fim do século XVI enfrentavam profundas reformas que afetavam tanto o número quanto o caráter das instituições religiosas, devido à dupla pressão do crescimento da população e do crescente fervor religioso da Contra-Reforma católica. Em decorrência disso os conventos estavam abarrotados, razão pela qual muitas moças foram recusadas, enquanto outras eram aceitas graças a parentescos nos conventos ou ao valor do “dote”.
Recebeu educação do pai, que lhe ensinou a educação renascentista, e principalmente a doutrina religiosa católica, incomum para aquela sociedade, que costumava receber as instruções da parte materna.  Apesar de muitos aspectos de sua educação parecer semelhante à de muitas outras mulheres religiosas de seu tempo, o fato de ter sido educada pelo pai torna-a mais próxima daquelas mulheres cultas e humanistas da Renascença de que a maioria das mulheres da classe média de seus dias. Ela sempre foi envolvida por cuidados porque acreditavam que era uma “escolhida” e foi levada para o convento com apenas nove anos de idade. Transformada (Transformou-se) em uma freira obediente e exemplar, convivendo com mulheres que tinham uma vocação religiosa e outras que não tinham essa vocação.

Os fatos sobrenaturais começaram a ocorrer ainda na infância, na casa de seus pais, mas Quando iniciam suas visões sobrenaturais no convento, Benedetta busca ajuda de seus superiores, é investigada e no primeiro momento é considerada como doente por sentir dores durante as visões, mas com a continuidade, acabam por aceitar que ela era realmente uma visionária.
Assim que o convento das teatinas da Pescia foi reconhecido pela igreja com o apoio de todas as irmãs e das autoridades eclesiásticas locais, Benedetta alcançou um posto de prestígio precocemente, aos 30 anos, por ser uma freira visionária. Quando esteve à frente do convento como abadessa, tornou-se eficiente administradora, dominava a parte social, econômica, política e espiritual das necessidades da ordem, articulava e selecionava os membros do conselho que arrecadavam e mediavam as doações. Além disso, ela também coordenava a venda dos produtos agrícolas que produziam, incluindo a seda que era fabricada pelas freiras dentro do convento, atribuía nomeação das freiras capacitadas, entre outros afazeres.
Benedetta torna-se uma mulher de influência e poder, uma ascensão feminina considerável na era moderna, mas suas visões de naturezas mística e erótica levantam suspeitas quando ela diz ter um contato sobrenatural com Cristo...

Terceira Parte -
Espiritualidade


O nascimento de Benedetta em 1590, foi um fato permeado por uma atmosfera sobrenatural, de contos de fadas. Seu pai aguardava por seu nascimento  quando  parteira que a assistia o informa sobre a possibilidade de mãe e filha não sobreviverem. Giuliano era um homem religioso, e imediatamente implora a Deus que poupe suas vidas. Quando a parteira o avisa de que estava tudo bem com Midea e o bebê, Giuliano faz uma promessa de mandar a filha ao convento para que se dedique ao serviço Sagrado.
A menina recebe o nome de Benedetta que significa  abençoada, e seu pai fiel a sua promessa, passa então de forma dedicada e incomum para a época, a educar sua filha dentro da doutrina Católica de modo a prepara-la para um destino já resolvido por ele, isto, o que era comum na época. Giuliano passa a instrui-la para, no mínimo, ser uma santa. Neste tempo,  filhos de ambos os sexos eram educados pela mãe no primeiro estágio de suas vidas, até por volta dos cinco anos de idade, quando então os meninos passavam a receber educação ministrada por  um professor homem.
Com Benedetta foi diferente Aos cinco anos já sabia de cor a litania dos santos (1°) e  outras orações; aos seis anos, aprendeu a ler e a estudar os rudimentos da doutrina cristã, inclusive algumas noções de latim. Sob a orientação de seu  pai, um homem devoto, ela repetia as orações. Giuliano era especialmente apegado a um crucifixo que possuía e em seu testamento deixa estabelecido que após a sua morte e de sua esposa, a casa onde viviam deveria ser transformada num oratório dedicado a Nossa Senhora .
Sua mãe, muito devota à Santa Catarina de Siena (2°), em suas conversas com a filha diz à ela para ter a Madona como sua mãe e protetora , dirigindo-se a santa sempre que se sentisse insegura, como faria à sua própria mãe.  Teve, desse modo, uma tímida participação em sua educação ensinando a menina a rezar cinco padre-nossos e oito ave-marias por dia, pois acreditava ter que encaminhar a filha para uma mulher mais poderosa, sobrenatural, que oferecesse melhor proteção do que ela própria à  Benedetta.  Proteção contra o que ou quem?
·         Suas visões começam na infância. Certo dia, a menina é atacada por um cão negro que aparece e tenta arrastá-la consigo. Os gritos da criança o assustam, e quanto sua mãe vem socorrê-la, ele já tinha desaparecido. Esse fato foi compreendido como o diabo ter se disfarçado de animal a fim de machucá-la. Seria preciso, a partir disso, que ela tomasse cuidado.
·         Um outro fato foi o de um rouxinol que começou a acompanha-la , imitando as canções que ela cantava.Quando não queria que ele lhe acompanhasse, ordenava que se calasse, ao que o rouxinol obedecia. E ela aceitava o acontecimento com naturalidade, sem medo, nem agradecimentos  a Deus por testemunhar Seu poder. Conviveu com o pássaro durante algum tempo e última vez que o viu, estava com nove anos, a caminho a Pescia para juntar-se a outras mulheres dedicadas a vida religiosa. Despediu-se dele e, segundo moradores, ele nunca mais foi ouvido naquele lugar.
O rouxinol possui um simbolismo ligado ao amor, sentimentos e a morte. [{Shakespeare}
  • A Europa vivenciava o expansionismo e tudo era passível de virar mercadoria, e o mercado de “casamentos” , tanto comuns, como com Cristo, não escapava a regra. O dinheiro era importante para se colocar uma filha no convento. Tudo se torna passível de virar mercadoria, e o mercado da fé era um dos que mais poder e dinheiro necessitava para se auto-afirmar nesse novo mundo...
·         A autora  “imagina os sentimentos de uma criança montanhesa de nove anos de idade aproximando-se da agitação febril de uma pequena cidade à sombra de um dos maiores centros culturais da Europa” , e o impacto para uma criança da montanha, em termos de distância cultural e psicológica, a partir dessa mudança de mundos individuais e geografias culturais completamente diferentes.
·         Fernand Braudel nos diz que “as montanhas são um mundo à margem da civilização”. (3°, 4°)
·         Em 1599,ingressa na ordem religiosa das teatinas,  momento em que a comunidade monástica ainda não havia sido  regulamentada. A verdadeira constituição desta ordem não sobreviveu, só podemos vislumbrar através de algumas anotações feitas por um padre da Sagrada Anunciação, que dá uma breve descrição de suas atividades.
·         Sob a direção espiritual do padre confessor, Paolo Ricordati, as teatinas são orientadas a adotar a chamada Regra de Santo Agostinho, que era um conjunto de conselhos espirituais dentro dos quais cada comunidade poderia acomodar suas regras mais específicas. A regra determinava a postura das freiras, como a necessidade de levar uma vida comunal sem propriedade privada, a observância de orações,  mortificação da carne através do jejum, obediência, leituras da Bíblia, cumprimento dos Santos Sacramentos toda semana, confissão dos pecados no refeitório e a cada quinze dias em seu local de oração e na presença de todas. permanência em retiro, só podendo ser vistas na missa da igreja mais próxima.
·         Assim que seu pai a deixou, ela ajoelhou-se diante da estátua de Nossa Senhora e recitou essa prece :                                         “Minha mais doce mãe, deixei minha mãe carnal por ti, peço-te que me aceites como tua filha”. A Madona pareceu acenar afirmativamente.
·         A autora diz – “Um tempo depois, deu mostras que sua filha adotiva lhe era particularmente cara. Num relato Benedetta conta que certa vez, enquanto orava em frente à Virgem, não sabia qual meditação escolher para agradar a si mesma e à Sua Mãe, como um sinal de satisfação, a Virgem inclinou-se para beijá-la. Ela gritou assustada, e a estátua caiu de cima do altar. A Madre superiora veio correndo e ergueu a estátua. Sua reação contrasta com suas primeiras reações diante de acontecimentos sobrenaturais”.
·         Começa, então, a demonstrar que questiona para si mesma o quão extraordinários seriam tais acontecimentos. Todas essas informações nos ajudam a perceber o imaginário onde Benedetta teve construída sua espiritualidade. Uma espiritualidade forjada a ferro e fogo...

·         O sobrenatural recomeça em 1613, pouco antes de sua ordem religiosa receber permissão para construir seu convento - Benedetta tem 23 anos e conta à madre superiora e a seu confessor que estava tendo visões de fundo místico. O livro relata que ela , sendo aconselhada pelos superiores, tentava de todas as maneiras resistir as visões...Que sentia dores e sofria muito quando fazia tais contatos.
·         Em seus relatos sobre as visões, ricos em detalhes deixa claro a profundidade de seus conhecimentos cristãos. Sempre exaltando o mundo superior – divino-, numa eterna luta para escapar das armadilhas do mundo inferior – material - mas o que sabia ela, realmente, sobre o mundo material? Dentro de seu mundo encantado, provavelmente imaginava o mundo humano um lugar de perversão ao qual ela deveria resistir. Se precisava resistir, significa que seria “tentada” por ele? Depois de algum tempo os êxtases se tornaram frequentes
·         Ela afirmava incorporar o próprio Jesus Cristo e esse, através dela, dava ordens para que todos aceitassem as determinações de Benedetta, pois essa era sua “noiva”, uma pessoa especial e ameaçava castigar os desobedientes... Em um de seus êxtases, teve o seu coração arrancado por Jesus e substituído por outro. Bartolomea Crivelli, sua acompanhante, está em seu quarto no momento da visão e é testemunha ocular desse evento. Na página 104,  falando através dela, Jesus discorre sobre as virtudes de Benedetta e ordena os preparativos para um arranjo de casamento rico em conteúdos simbólicos...Durante o casamento, afirmava ter recebido de Jesus um anel, do qual as freiras só viam a marca.
·         Havia também o anjo Splenditello, sua identidade masculina, através da qual se absolvia dos pecados, pois isso lhe permitia justificar sua personalidade que, ao mesmo tempo assimilava e burlava valores da sociedade patriarcal, num tempo em que as mulheres não tinham voz. Sua voz para ser ouvida deveria passar pelo Sagrado...
·         O conteúdo de suas diversas visões nos dá um panorama de suas pretensões. Durante o tempo em que esteve à frente da ordem cumpriu suas funções de administrar o convento e a vida espiritual das suas  irmãs com eficiência.
·         Na primeira  investigação, suas declarações ao Santo oficio terminam por convencer  aos investigadores que realmente ela poderia ser uma freira visionária, pois se comportava e agia como tal e havia elementos como a verificação de sinais, a ortodoxia das visões e o caráter e o comportamento de visionária .A preocupação central dos investigadores com o conteúdo de suas visões eram se estas estavam ou não em conformidade com obrigatória sujeição à Igreja. Por fim , havia a alegação de que o destino da Pescia estava em suas mãos, e ela poderia determinar se eles seriam severamente punidos ou salvos. Com esse tipo de declaração, ela coagia a comunidade e isto dava a ela uma parcela considerável de poder. Haviam interesses envolvidos por parte do clero e suas visões traziam cada vez mais recursos para que a obra do convento fosse concluída. Enquanto seu desempenho contribuísse para tal ela seguiria livremente.

As investigações não estavam, porém, concluídas. A perigosa dinâmica interna dos conventos eram observadas de perto pelo Santo Oficio. pois traziam a memória dos investigadores outros casos, onde muitas vezes ocorriam situações tramitavam entre santidade e loucura. Alguns casos de assassinatos , por exemplo. Afinal não é difícil imaginar as tensões que surgiam a partir dessa dinâmica,onde conviviam mulheres de real vocação e outras não, com níveis de riqueza, educação e idades diferentes, uma situação própria de conflito.
Durante a primeira investigação, Benedetta fica um tempo afastada da sua função de abadessa, sendo reempossada a seguir, e tudo volta ao normal, por algum tempo. Nada de significativo foi registrado durante os dois anos seguintes, e Benedetta levou uma vida dupla,- como administradora e líder espiritual , e por outro lado como mística.
Entre agosto de 1622 e março 1623, o núncio papal (5°), que como representante da Santa Sé, tinha autoridades obre a Pescia, envia diversos juízes para investigarem as alegações de Benedetta. Esses juízes tinham mentes céticas, e talvez por alguma denuncia de algum outro convento enciumado, ou talvez um exame burocrático rotineiro de jurisdição chamou a atenção  e a legitimidade de Benedetta é mais uma vez questionada.

Os inquisidores retornam a Pescia e reiniciam suas investigações. Desta vez as freiras, que já não agüentavam os desmandos de Benedetta que de boa nada tinha, segundo elas, resolvem contar ao Santo Oficio que não estavam certas da veracidade das visões, que de fato nada viram sabendo apenas o que lhes era dito por Benedetta nestas ocasiões, e Bartolomea Crivelli “testemunha” de seus êxtases místicos, confessa seu envolvimento com Benedetta.

Em relação a sua espiritualidade, esses foram alguns dos fatos destacados pela autora. O relato de todo o drama pessoal que viveu e sua ligação nem um pouco ortodoxa com Bartolomea, nos diz que Benedetta foi uma santa inventada, primeiramente idealizada por seus pais, sendo criada e treinada dentro da fé crista, e depois pela própria tônica do enredo onde sua historia se desenrola. Podemos notar que todos os fatos narrados, em relação a suas visões, vão de encontro aos conhecimentos que ela obtivera através de sua preparação para a vida monástica e muito tênue e a linha que separa sua espiritualidade de sua imaginação, num mundo que começava se expandir buscando importância e riqueza.
Benedetta era apenas uma mulher humana com um ego inflamado que, como tantos outros personagens de histórias sagradas, acredita piamente ser receptáculo de um ser divino – não podemos julgar isso como um simples fingimento e sim algo bem mais profundo- e a igreja se serviria disso do modo como lhe fosse conveniente, encontrando sempre no lado humano algo contrario a toda essa “virtude”, quando isso representasse algum perigo àquela instituição...
E quem não tem pecados? Ela tinha...

1° - A origem da Ladainha de Todos os Santos data do século III. O texto-base chamava-se Oração dos Fiéis, onde constavam os nomes dos santos mártires, cujas memórias eram celebradas durante a Missa. Com o passar dos anos, essa lista foi sendo ampliada e passou a ser chamada Ladainha ou Litania de Todos os Santos. Hoje em dia, ela é rezada pelos fiéis durante as celebrações batismais.
2° - SantaCatarina nasceu em Siena, Itália no dia 25 de março do ano 1347, sendo a 24ª filha de um tintureiro chamado Giacomo di Benincasa. Os seus pais eram burgueses comerciantes, com forte sentido religioso e familiar, próprio do seu tempo.                Aos sete anos de idade Catarina consagrou a sua virgindade a Cristo e aos 15 ingressou na Ordem Terceira de São Domingos.
3° “As montanhas, portanto, impõem-se às planícies”. Impõem-se porque a planície carece de um grande recurso que a montanha possui: o homem que trabalha. É que a população das montanhas é móvel, e suas próprias características físicas não permitem o desenvolvimento de populações abundantes, mas que não cessam de crescer. Assim, no pensamento braudeliano, a pobreza da montanha é secundária perto do “movimento” que ela permite (Braudel, 1983, p.43).
4° »...antes da aceleração do trabalho humano, da construção de estradas e cidades, eis a grande característica física das planícies: “servem normalmente de coletores para as águas” (Braudel, 1983, p. 73). Todas essas zonas baixas conhecem a estagnação das águas e suas conseqüências: a água estagnada é sinônimo de morte, conservando perigosa umidade, são causadoras das febres palúdicas. “Trata-se, para resumir, de uma verdadeira doença do meio geográfico” (Braudel, 1983, p.78).
Um núncio apostólico ou núncio papal é um representante diplomático permanente da Santa Sé - não do Estado da Cidade do Vaticano - que exerce o posto de embaixador. Representa a Santa Sé perante os Estados (e perante algumas organizações internacionais[1]) e perante a Igreja local. Costuma ter a dignidade eclesiástica de arcebispo. Normalmente reside na nunciatura apostólica, que goza dos mesmos privilégios e imunidades que uma embaixada.



Última Parte –
Sexualidade

Os investigadores estavam despreparados para muitas das revelações que foram feitas pelas freiras do convento, em especial pela irmã Bartolomea Crivelli, acompanhante especial de Benedetta durante os anos anteriores. Ela relatou que Benedetta a persuadia a envolver-se nos atos mais impuros, os quais ela só viria a revelar naquele momento por um sentimento de enorme vergonha, e por ter descoberto que Benedetta era uma impostora, que seus feitos eram mentiras. Ela relata:
Benedetta, durante dois anos seguidos e pelo menos três vezes por semana, de noite, depois de tirar a roupa e ir para a cama, esperava que sua acompanhante tirasse a roupa e, fingindo precisar de sua ajuda, chamava-a. Quando Bartolomea se aproximava, Benedetta agarrava-a pelo braço e a atirava à força na cama. Abraçando-a, ela a colocava embaixo de si e, beijando-a como se fosse um homem, falava-lhe palavras de amor. E ela ficava se mexendo em cima dela até que ambas se corrompiam. E, assim, à força, ela a segurava por, uma, duas e às vezes até três horas.”
Bartolomea relata também que os fatos não ocorriam apenas durante a noite, mas também durante o dia quando Benedetta fingia estar doente e ficava na cama ou na sala de Benedetta, pois sendo Bartolomea analfabeta, Benedetta se ofereceu para ensiná-la a ler. Esse era um pretexto para os encontros diurnos.
Não se tinha notícia desse tipo de coisas nos conventos da Itália, sabia-se apenas de relações entre freiras e padres, mas não entre mulheres, razão pela qual os juízes que ouviram a história de Bartolomea não tinham absolutamente nenhum esquema intelectual ou imaginativo para incorporar o tipo de comportamento que ela descrevia.
Questionada sobre sua passividade diante dos fatos, Bartolomea  respondeu que para seduzi-la e enganá-la, Benedetta lhe dizia que nem ela nem Benedetta estavam pecando, porque era o anjo SPLENDITELLO  e não ela que fazia aquelas coisas. E ela falava com a voz de SPLENDITELLO ao falar através de Benedetta, prometendo-lhe que um dia, também Bartolomea veria sua presença angélica. Sentindo que Bartolomea não estava totalmente convencida, o próprio Jesus falava às vezes através de Benedetta antes de fazerem amor. Quando Benedetta falava como SPLENDITELLO, não só a Bartolomea, mas também a outros observadores, sua voz, sua linguagem e até sua aparência mudavam: ela aparentava um belo menino de 15 ou 16 anos.
Para os juízes eclesiásticos, segundo alguns juristas, ambas eram igualmente criminosas, pois além de simples atos de luxuria, as duas mulheres praticavam masturbação mútua até atingirem o orgasmo. Ser amada, desejada, acariciada e beijada por um anjo ou por um ser humano, certamente ligava Bartolomea e Benedetta por uma necessidade profunda de calor e companhia.
Bartolomea a todo momento afirmava que fora forçada a manter a relação. A sociedade em que ela vivia era uma sociedade religiosa na qual o sobrenatural e o milagre participavam ativamente na vida quotidiana. Ela era analfabeta, e a soma de todos esses fatores podiam dar a ela a crença de que SPLENDITELLO fosse uma presença bem real.
Quanto a Benedetta, o registro eclesiástico indica que como SPLENDITELLO, Benedetta afirmava amar Bartolomea e exigia seu amor em troca. Ela não só oferecia amor como também queria ser amada, e o que ela buscava na relação era mais que o prazer sexual, queria amor em todos os sentidos.
Privada ainda muito nova do amor e proteção dos pais, especialmente do pai, ao qual era profundamente ligada, proibida pelas leis da vida em clausura desde seus nove anos de estabelecer outros laços de família ou de amizade, Benedetta buscara afeição em outra parte e encontrara-a nos braços de Bartolomea. Mas Benedetta não era uma mulher comum, era uma freira, assim SPLENDITELLO, sua identidade masculina, não poderia ser um homem, mas um anjo, para ser compatível com as proibições sexuais impostas pelo voto monástico. Nesse papel duplo, de homem e de anjo, Benedetta se absolvia dos pecados.
SPLENDITELLO era essencial para sua noção de “eu”, porque lhe permitia assimilar e burlar os valores da sociedade patriarcal.
Benedetta recusou-se a discutir seus sentimentos ou sua relação com as autoridades. Ela negou os fatos e o que se sabe provêm dos relatos de Bartolomea.
Como as autoridades eclesiásticas responsáveis pela investigação não conseguiam compreender completamente o que havia ocorrido, para demonstrar o mau comportamento sexual de Benedetta, deram uma pincelada final acrescentando que segundo depoimento de quase todas as freiras, Benedetta, enquanto abadessa, encontrava-se diariamente com sacerdotes e que foram vistos segurando e beijando as mãos uns dos outros. Essas acusações eram importantes porque ajudavam a armar a acusação da falta de virtude de Benedetta.
Com essa nota o relatório se encerrava.
No último relatório sobre Benedetta a conclusão tendia à indulgência e à falta de consentimento e de vontade por parte dela.
Nos próximos 40 anos não há registro sobre a história de Benedetta ou sua situação, apenas fragmentos do registro de uma freira que relata que “em 7 de agosto de 1661 Benedetta Carlini morreu aos 71 anos de febre e dores de cólica, depois de dezoito dias de doença. Ela morreu em penitência tendo passado 35 anos na prisão”.
Como houve um intervalo de três anos entre o final do inquérito e a prisão, não se pode precisar qual o motivo que finalmente motivou a sentença. Segundo a autora, Benedetta saiu-se relativamente bem, pois se provada a prática de sodomia, tanto ela como Bartolomea seriam condenadas a serem queimadas na estaca, pois esta era a pratica corrente.
Quanto a BARTOLOMEA, a mesma freira escreve em seu diário  que ela veio a falecer em 18 de setembro de 1660, que havia passado por grandes dificuldades, que trabalhava o mais que podia e era totalmente devotada à oração sagrada, o que sugere que ela estava integrada à rotina do convento. Não há nenhuma notícia de prisão e ao que parece ela passou a vida como uma freira comum.
BENEDETTA era uma ameaça maior, por isso a prisão.
No mesmo diário há relato de que a notícia de sua morte espalhou-se para fora dos muros do convento, e devido à sua popularidade 40 anos antes, foi preciso trancar as portas da igreja para evitar o alvoroço e tumulto da população até a hora do enterro.
Porque?  Talvez pelo fato de seus avisos proféticos terem se concretizado, como a peste que se abateu sobre Pescia em 1631, trazendo morte e miséria.
No fim Benedetta triunfou. Ela deixou sua marca no mundo, e nem a morte nem a prisão puderam silenciá-la”.

Conclusão
Na Europa pré-moderna pensava-se que as mulheres eram mais facilmente propensas à devassidão que os homens. Em conseqüência disso, as acusações contra mulheres baseadas em más condutas sexuais eram freqüentes, só que na grande maioria dos casos, o objeto sexual do desejo feminino era homens.
Durante muito tempo os Europeus não aceitavam o fato de que uma mulher ser atraída por outra mulher. A visão da sexualidade humana era falocentrica – as mulheres tinham que ser atraídas por homens e vice-versa. No direito, na medicina e na mentalidade popular as relações sexuais entre mulheres eram ignoradas.
Segundo a autora, haviam milhares de casos de homossexualismo julgados pelas cortes legais e eclesiásticas na Europa medieval e do inicio dos tempos modernos, mas não há praticamente nenhum envolvendo relações sexuais entre mulheres. Há referência a uns poucos casos ocorridos na Espanha, quatro casos não totalmente esclarecidos na França, dois na Alemanha, um na Suíça, um na Holanda e nenhum, até a época em que o livro foi escrito, na Itália.
Em uma de suas epístolas São Paulo já fez menção a está prática (pg 15 – linha 2). Sobre isso, Santo Ambrósio (século IV), São João Crisóstomo (século IV), Santo Anselmo (Sec. XII) interpretam o texto como uma referência ao sexo entre mulheres.
Essa prática ofendia tanto a lei de Deus que os primeiros manuais de penitência já contemplavam penas os seus praticantes.  O livro mais conhecido que condena essa prática entre outras relacionadas ao sexo é a Suma Teológica” de São Tomas de Aquino.
Para eliminar a tentação, os concílios de Paris de 1212 e de Houem de 1214 proibiram as freiras de dormirem juntas e estabeleceram que deveria haver uma lamparina queimando a noite toda nos dormitórios. A partir do século XIII, as regras monásticas recomendavam que as freiras não entrassem umas nas celas das outras, que deixassem as portas destrancadas de forma que a abadessa pudesse inspecionar. A intenção das regras era implícita e a idéia de que essa prática pudesse acontecer era abafada, não se queria crer nessa possibilidade.

A Autora
Judith C. Brown:
ü  Historiadora, ex-decano da Faculdade de Ciências Humanas e professora de Estudos Medievais da Faculdade de História na Universidade Rice.
ü  É vice presidente para assuntos acadêmicos e reitora na Universidade Wesleyan.
ü  É bacharel e mestre em História pela Universidade da Califórnia em Berkeley .
ü  É PHD em História pela Universidade John Hopkins.
ü  Sua área de atuação é Primórdio da Europa Moderna, da Renascença italiana, econômica, social e história de gênero
ü  Em 1997 fundou um Centro de Estudo de Línguas para incentivar abordagens inovadoras  de ensino da língua e aumento da participação de alunos em estudos e trabalhos no exterior.
ü  Sua bolsa de estudo diz respeito principalmente à cultura e sociedade do renascimento na Itália.
ü  Seu primeiro livro: “Na Sombra de Florença: Sociedade Provincial na Renascença Pescia” (1982) explora os efeitos sociais, econômicos e políticos do imperialismo florentino.
ü  Seu segundo livro: “Atos Impuros, a vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença, de 1986 foi traduzido para nove línguas, investiga as atitudes em relação ao gênero e sexualidade através de um caso que começou como uma investigação eclesiástica sobre experiências místicas de uma freira.
ü  Ela está atualmente trabalhando em um estudo sobre “A Economia Política de Cósimo I de Médici”, o primeiro duque da Toscana e grande patrono das artes.

Bibliografia
“ATOS IMPUROS - a vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença”  - Judith. C. Brown
Imagens retiradas da internet através da pesquisa sobre o tema "Renascença" no google.

RETRATO DO BRASIL - ENSAIO SOBRE A TRISTEZA BRASILEIRA -

“Época triste a nossa… mais fácil quebrar um átomo do que o preconceito.”
Albert Einstein.
Introdução
O objetivo deste trabalho é falar sobre o autor Paulo Prado e sua interpretação da formação nacional do estado brasileiro, a miscigenação e suas consequências, partir de três pilares: cultura, meio e raça.
Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira- é um clássico da nossa cultura e trata-se de uma brilhante e polêmica interpretação do caráter nacional. Publicada em 1928, a obra busca entender e explicar o atraso econômico e cultural da Nação, através do processo de formação étnico-cultural da nacionalidade e os vícios crônicos da política naquele momento. 
O livro é dividido pelo autor em quatro capítulos: A Luxúria, A Cobiça, A Tristeza, o Romantismo e um Post- Scriptum, e trata-se de uma obra contestadora das falácias românticas, que dava ao Brasil “uma figuração quase épica” (Lourenço Mota). Afirma em sua tese que os principais fomentadores da melancolia, da degeneração do caráter e do atraso sócio-cultural do Brasil, foram a luxúria e a cobiça desmedidas nos tempos coloniais, situação mascarada pelo romantismo no século XIX.
No primeiro capítulo dedicado a Luxúria encontramos, entre outros, os seguintes dizeres:

” ...Paraíso ou realidade, nele se soltara, exaltado pela ardência do clima, o sensualismo dos aventureiros. Ai vinha esgotar a exuberância da mocidade força, para satisfazer os apetites de homens a quem já incomodava e repelia a sociedade européia” 

Os colonizadores que vieram à nova terra, já conheciam outras culturas, eram "miscigenados moralmente". E a decadência moral era um fato. Paulo Prado faz uma comparação à colonização da América do Norte exortando a disciplina e a disposição dos peregrinos para o trabalho, donos de uma vontade inquebrantável e fortes princípios morais e religiosos. Os portugueses também traziam em sua alma a tradição do cristianismo decadente da Europa e tinham também assimilado outros costumes totalmente diversos, e isso talvez explique o comportamento de barbárie em relação ao do selvagem que aqui vivia. Homens rejeitados em sua pátria e por este motivo, sem nada a perder, lançavam-se nas aventuras em busca da liberdade e da riqueza, para retornar á sua terra e usufruir de uma felicidade, das benesses e do respeito que o poder do ouro lhes daria; vinham de uma Europa tumultuada pela Renascença e suas reformas, castigada por guerras, revoluções e invasões por conquista de territórios.
A imagem retratada pelos primeiros europeus que aqui chegaram, era a de extrema beleza, abundante riqueza e de um povo naturalmente gentil e sensual. A visão que estes homens tiveram com sua a chegada ao Novo Mundo, foi descrita por Cristovão Colombo nas primeiras cartas endereçadas ao rei, como um paraíso edênico, de onde o homem havia sido expulso e eles agora retornavam, devido à providência. O autor se refere ao descobrimento como resultado de um movimento libertador que dotou esses aventureiros de um espírito cruzadista, de novas ambições e curiosidades sobre os mistérios de regiões ainda desconhecidas e passíveis de serem conquistadas. O clima quente e a beleza luxuriosa da mata virgem despertaram naqueles homens os mais primitivos dos instintos e ao entrarem em contato com nativos que viviam livremente, rapidamente assimilaram alguns de seus costumes e, num culto ao corpo, deram vazão a todos os prazeres dos sentidos, alguns reprimidos e vigiados em sua pátria natal.  Os nativos eram livres, esses homens libertinos.        
A falta de mulheres brancas, a presença de mulheres indígenas e africanas, uma conduta sexual desregrada, o clima e a terra, contribuíram para que aqueles colonos primitivos se entregassem a todos os vícios e crimes, com uma espantosa imoralidade que excedia a todos os limites, segundo os próprios contemporâneos. Desenha-se o cenário onde surgiriam as primitivas populações mestiças, a partir de “relações de pura animalidade” (pg. 31).  
Outra paixão dominava aqueles homens: a Cobiça, outro elemento determinante segundo o autor, que marcou profunda e psicologicamente o caráter do brasileiro, que assim descreve o colonizador: 

                                                                                           “Corsários, flibusteiros, caçulas das antigas famílias nobres, jogadores arruinados, padres revoltados ou remissos, vagabundos dos portos do Mediterrâneo, anarquistas, em suma, na expressão moderna, e insubmissos às peias sociais- toda a escuma turva das velhas civilizações. Foi deles o Novo Mundo”.

Ao chegar ao novo território, com o imaginário repleto das histórias de Marco Pólo e Mandeville, acerca dos paraísos perdidos, das ilhas ouro e de prata, das montanhas reluzentes repletas de pedras preciosas, entregam-se deslumbrados a novas descobertas. Após se servirem dos “donos da terra” de todas as maneiras possíveis, exterminaram aldeias inteiras, com sua insaciável fome de ouro. E não mediam esforços para fazer fortuna rapidamente, possibilidade que fascinava e renovava o animo a cada dia de prosseguir em sua busca.
Mas as minas só foram encontradas, de fato, no final do século XVI, quando recomeçou a febre do ouro. Desta vez, as fortunas surgiam repentinamente, porém o país empobrecia. O cultivo da terra foi abandonado, tal ansiedade pela descoberta do metal, ninguém mais trabalhava esperando pela loteria das minas, com exceção do negro que de fato, era o único que trabalhava. As pessoas morriam de fome, ao lado de montes de ouro; o comércio do açúcar foi comprometido devido à diminuição do plantio da cana, causando uma crise de mercado nos países que importavam o açúcar brasileiro, para citar apenas alguns dos diversos problemas da colônia. E, o pior de tudo, o país se despovoava.
Portugal definitivamente, não sabia governar, e entregou nas mãos da Inglaterra e de outros países da Europa praticamente toda fortuna que conquistou, pagando um alto preço pelo luxo que a Metrópole e seus parasitas insistiam em ostentar.  Os bandeirantes, alucinados e enfraquecidos, segundo o autor, se multiplicavam e morriam, junto com suas bandeiras; as minas funcionavam ininterruptamente, esgotando o meio ambiente. Os trabalhadores, também esgotados, cumpriam sua parte, mas os governantes não exerciam sua função de bem administrar tais riquezas. Dependiam do trabalho dos governados, mas se recusavam a governar de fato. Uma fórmula infalível de miséria.
O autor, em sua tese, afirma que a junção desses dois terríveis vícios, a luxúria e a cobiça, legou ao povo do Brasil a Tristeza.   Neste capitulo, discorrerá mais uma vez sobre a imoralidade do clero e da sociedade convivendo intimamente com mouros e negros.  

”Numa terra radiosa vive um povo triste.
                 Legaram-lhe essa melancolia os  descobridores que
a revelaram ao mundo e a povoaram”. 

Compara a América do Norte, colonizada por peregrinos que viviam na disciplina rígida do cristianismo protestante e sua “higiene moral” e que lavravam a terra com suas próprias mãos, com o Brasil, uma nação sem força de reação, colonizada por mercenários imorais e corruptos, como afirmou Pe. Vieira: “... furtar era um verbo conjugado em todos os tempos na Índia portuguesa”. A isso, junta-se o problema da mestiçagem, com o agravante da exploração do trabalho escravo, que legou ao país um atraso econômico, uma gente sem princípios, indolente, ignorante e gananciosa. Para o autor, a discrepância de valores morais e éticos entre essas nações foi determinante na prosperidade da primeira e, naturalmente, na ruína da segunda.
 Atribui aos excessos físicos e à ausência de atividade mental o desenvolvimento de um comportamento melancólico e doentio, que sucedeu à vida promiscua do colono e que seria hereditário ao povo dessa descendência, gerando um país que cresceria como um corpo mal nutrido de virtudes, doente e desorganizado, sendo mal administrado e portanto, cheio de deficiências que o inferiorizaria diante de outros países. Prado faz uma dura critica a história do país que começa a ser escrita de forma lírica, característica do romantismo que "adora sua própria dor".
O Renascimento havia dado o impulso aqueles homens que se aventuravam pelos mares em busca de um Novo Mundo e isto seria entendido de forma diversa pelas diversas classes de pessoas daquele tempo, neste caso significou conduta desenfreada e nenhum amor à terra. O Brasil foi colonizado por esse homem, sua cultura transplantada em uma terra definitivamente diferente da velha Metrópole, e por este motivo não teria atingido o resultado esperado. Aponta também a falta de originalidade do povo que imitava tudo o que vinha de fora, como se isto os tornassem iguais a nobreza ostentada pela Coroa falida. Mas o mal já estava feito, talvez impossível de remediar, senão com o tempo. E diz:   “A luxúria, a cobiça, tristeza e o romantismo, combinando-se de mil maneiras, haviam se incorporado ao modo de ser do brasileiro”.
 São Paulo, desde sua fundação, era diferenciado pelo povo que ali vivia, foi o primeiro a esboçar um sinal de um patriotismo regional, lugar onde o centro cultural se formou. A mistura dos europeus com a nobreza natural do gentio, fez surgir uma raça forte, rude e valente, coisa que a história nos revela ao falar da superioridade dos paulistas e suas interferências heróicas em diversas ocasiões. Isso se devia a miscigenação de duas culturas onde uma complementava a outra, na visão do autor. A hospitalidade e generosidade indígena aliada à coragem e espírito aventureiro do branco foram qualidades decisivas nas entradas e bandeiras. Diferentemente de outras, onde o cruzamento com africanos teria "contaminado" a descendência, pois ele era escravo, e perdendo além da posse de seu corpo a posse também de sua alma. Isto resultou numa fraqueza, de onde surgiu sua miséria moral e a ilusória superioridade de senhor de escravos. Os negros não eram donos de si, nem mesmo de seus filhos, quanto mais de outros bens. De acordo com a observação cientificista, baseada na raça e história, Paulo Prado conclui que, após conviver com desprezo da dignidade humana dos senhores, numa relação imoral e inculta, sobrepondo à força uma cultura e uma religião tão diferentes das que conheciam, o senhor pensava poder apagar completamente a cultura africana que chegou a nossa terra nos negreiros, cultura que se julgava perdida pelo desleixo dos costumes, sua resignação ao chicote, e todas as arbitrariedades protegidas por lei. Isto marcou a mentalidade daqueles desterrados, que nunca mais voltariam a ver sua pátria. A inferioridade marcada às vezes no rosto a ferro quente, concluía a destruição psicológica. O africano não passava de uma mercadoria, valiosa até, mas uma mercadoria. Questiona os problemas que virão no futuro a partir dessa mestiçagem com brancos e índios, e a transformação biológica que, a seu ver, teria consequências desastrosas. Baseava-se num critério cientifico do século XVI, quando naturistas teriam catalogado diversas doenças surgidas a partir da mistura étnica. Havia também a possibilidade de, com a mistura das raças, os traços negros desaparecerem. Era o que Paulo Prado esperava.
No Post-Scriptum, texto agregado ao Retrato, diz que, inspirados pela Revolução Americana na luta contra os invasores e a expansão geográfica através das bandeiras e do gado, que algo parecido com um sentimento nacionalista, percepção de territórios e fronteiras, parece despertar. No final do século XVIII e no inicio do XIX havia apenas a sociedade, formada por diversos grupos étnicos, preparando-se para se tornar Nação livre e cortar de vez o elo com Portugal. Separar-se-ia da pátria-mãe o filho adotivo explorado e rejeitado, que pouco a pouco tomava consciência de seu tamanho, de sua força e, principalmente, da necessidade de sua emancipação política. O Estado sucedeu a Nação.

Conclusão
Diante de todas essas observações, Paulo Prado um modernista inconformado com os rumos do Brasil, expõe sua tese com uma franqueza admirável, sem se preocupar com a fama de pessimista que viria após as declarações contundentes no Retrato. Um detalhe nos chama a atenção. No momento em que Paulo Prado produziu esta obra, o Brasil passava por uma crise na produção de café:
"A famosa crise do café que faz parte da história de tantas famílias paulistas que sofreram suas duras consequências, começa na realidade em 1920, devido ao conti­nuo, descontrolado e excessivo aumento da produção do café, cuja safra chegava a espantosos 21 milhões de sacas para um consumo mundial de 22 milhões".( Histórianet -Crise de 1929 e Revolução de 1930; Ani­bal de Almeida Fernandes, Agosto, 2006).
A atmosfera daquele tempo comportava uma insatisfação em vários setores da sociedade paulista. Uma crise maior se anunciava por todo o território, e o autor não se omitiu diante desse fato. Preveniu aquela sociedade em relação a uma possível guerra ou a revolução, tamanho era o clima de tensão. Sua família tinha seu patrimônio e sua tradição ameaçados pela possível fragmentação do país. Temia que o "mal" do romantismo, que segundo afirma deformava e deturpava a realidade, e essa atitude "conformista" que se espalhara entre os brasileiros, levasse o projeto de construção nacional à ruína. Analisou criticamente os problemas nacionais, originários de uma matriz anacrônica instalada no país, e alertava seus contemporâneos sobre a necessidade de cortar sumariamente os laços com a época colonial, e assumir uma postura administrativa política eficiente para sanar os problemas nacionais. Prado revelou em seu Retrato do Brasil, além do perfil de um povo brasileiro que ele julga triste, o também triste perfil da elite aristocrática de sua época, que parecia viver num mundo separado. Percebemos essa distancia quando se refere ao povo brasileiro e suas mazelas, como se falasse de um outro, excluindo sua estirpe da mesma nacionalidade. Sentiam-se também "desterrados" em sua própria terra?A xenofobia presente em seu discurso, ao longo do livro, trazia sutilmente um outro embrião, que gestaria o sentido que hoje conhecemos como o conceito de  Racismo.
O livro foi intensamente criticado, pois ao escrever para a elite aristocrática de sua época, tocou fundo, sobretudo no espírito soberbo daquela classe, desmistificando as maravilhas que as obras românticas declaravam sobre o Brasil, buscando criar uma aura de perfeição e beleza, da qual se falava desde a chegada dos portugueses em nossa terra, ignorando a realidade de desigualdade e dos vários níveis de miséria herdadas do tempo colonial. Retrato do Brasil, obra destinada principalmente a replicar explicitamente a Afonso Celso, autor do livro “Porque me ufano de meu país”, e a todo “orgulho” nacional corrente na literatura brasileira, na agitação de 1928, as vésperas da queda da Velha República. Ele se preocupava com o futuro do Brasil e se comprometia a fazer de tudo para despertar aquele povo que dormia o sono colonial.
 Percebemos a relevante importância do ofício de historiador ao registrar a história e povoar o imaginário de um povo com as memórias de uma Nação, invocando dessa forma um espírito nacionalista.

O Autor
Paulo Silva Prado, paulista nascido em 1869, primeiro filho do conselheiro Antonio Prado, formou-se em 1889 na Faculdade de Direito de São Paulo. Sua família tinha a tradição dos cafeicultores paulistas, e representou São Paulo no Comitê de Valorização do Café (1913-1916). Tinha quase sessenta anos quando entrou para carreira literária.                                                                                      Historiador, sociólogo e escritor, líder da cafeicultura paulista e participante ativo da intensa atividade cultural daquela época, foi o mecenas de vários autores e principal organizador da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, que muito contribuiu para a renovação historiográfica brasileira, sendo considerado um dos maiores analistas da vida social no Brasil durante o período pré-revolucionário entre 1900 e 1920.


Referencias Bibliográficas :
PRADO, Paulo- Retrato do Brasil- Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira- 2ª Ed. – São Paulo: OBRASA; Brasília: INL, 1981
MOTA, Lourenço Dantas; organizador – Introdução ao Brasil – Um Banquete no Trópico – 2ª Ed. – São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 1999- (vários autores)
BERRIE,L Carlos Eduardo Ornelas; Tietê, Tejo, Sena: A Obra de Paulo Prado. Campinas: Editora Papirus, 2000, 248 páginas.
FERNANDES, Ani­bal de Almeida; Crise de 1929 e Revolução de 1930 - Histórianet , Agosto, 2006