domingo, 26 de dezembro de 2010

BAQUAQUA:- "A Identidade Perdida de um Ex- Escravo Afro-Brasileiro"- Mirna Galesco


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A narrativa feita pelo escravo Mohammad Gardo Baquaqua, resultado de suas lembranças ditadas ao abolicionista Bispo Samuel Moore, que foram editadas em inglês e por este motivo, pouco conhecida no Brasil, nos tras a visão da etcinidade como miragem que há muito se distanciou desse personagem que segue seu caminho buscando resgatar suas raízes. Em 1854 com uma idade aproximada de trinta anos foi quando Mahommah Gardo Baquaqua narrou sua biografia para o abolicionista Samuel Moore em Detroit, Michigan (EUA), jovem e possuidor de uma variedade de experiências vividas não somente por um homem, mas por um ex-escravo. Que tinha uma vida aparentemente normal para os padrões da sua sociedade na África, descendente de família de mulçumanos e comerciantes, conhecedor de vários dialetos africanos, trabalhou como aprendiz de ferreiro com seu tio no ofício de fazer agulhas.  Por infelicidade acabou sendo escravizado e caiu no  tráfico transatlântico. Sua escravização, os horrores, desesperos e mortes ocorridas no transporte do navio negreiro, são relembradas em sua narrativa:

“Ó, a repugnância e a sujeira daquele lugar horrível nunca se apagaram da minha memória! Não. Enquanto existir lembrança nesta mente maltratada, vou lembrar-me sempre. O coração até hoje adoece só em pensar naquilo”. (Moore, Samuel, 1854, p.85).

Vamos aqui neste comentário tentar estabelecer a visão de Moore seguida do comentário do Professor de História da Diáspora Africana, da Universidade de York, Canadá,  Paul Lovejoy , e assim investigar a questão da verdadeira identidade de Baquaqua. Experiências extraordinárias como escravo no Brasil da primeira metade do século XIX; as misérias, as humilhações, os açoites, as cicatrizes, que Baquaqua narra dizendo ser visível. Vendido como “mercadoria” para quem tivesse interesse; seu primeiro dono era um padeiro de Pernambuco; tratado com violência se embebedava e chegou a  tentar o suicídio, por esse motivo foi para o Rio, vendido novamente  para o capitão de navio, fazendo algumas viagens para o Rio grande do Sul, Rio de Janeiro e esta ultima a bordo com o capitão para os Estados Unidos, ouvindo rumores de que naquele país já não havia escravidão, sofrendo maus tratos, mais cheio de esperança fugiu do navio conseguindo a sua “liberdade”. Não graças a corte norte-americana, mas aos abolicionistas que forjaram sua fuga na cidade de  Nova York, em 1847 (EUA).

Baquaqua conta sua história a Moore e este, com sua visão extremammente cristã, dá ao texto uma nuance que sugere a conversão do escravo como um fato, mas analisando o decorrer da história, isso não se confirma. Teria esta sido mais uma forma, juntando-se as missões cristãs, de ir para a África e reencontrar seu lugar. Agora livre, viajou para o Haiti, sem saber falar se quer uma palavra daquele idioma, isso dificultou arranjar trabalho, ficou perambulando pelas ruas sem recursos, sem ter como se alimentar deixando-se levar pelo alcoolismo para sufocar sua melancolia, um liberto de alma enferma. O encontro com o casal de missionários e sua conversão ao evangelho cristão (1848) talvez tenha vindo comomoum bálsamo para seu sentimento aflito, depois da sua libertação conheceu o contato mais profundo com pessoas que o trataram com igualdade. Retornando para os Estados Unidos onde teve contato com a escola em Nova York, alfabetizando-se e sentindo na pele o preconceito racial, agora não por ser escravo, mas como negro vivenciando sua atual identidade naquela sociedade. 
Desde sua saída da África, contra sua vontade, iniciou-se um processo de tentativa de coisificação e despersonalização de sua identidade, situação muito comum, inerente a todos os nativos retirados de sua pátria africana para servirem de escravos no Novo Mundo. No caso de Baquaqua, percebe-se em seu relato, que ele tenta manter suas referencias ao longo do caminho, mas estas vão se perdendo, pois o tempo transforma coisas, lugares e pessoas com sua passagem.
O Professor Paul Lovejoy, em seu comentário sobre a biografia de Baquaqua, defende o estudo sobre a etnicidade como forma de preencher a lacuna metodológica existente causada pela falta de dados precisos  no que se refere a escravidão.  Ele procura estabelecer um roteiro possivel desde a saída de Mahommad da África, por sua especial importância, já que relatos vindos dos próprios escravos constituem uma raridade, se tratando de um povo sem voz na história. Existem menos de trinta textos escritos ou ditados por cerca de cinquenta escravos e ex-escravos de 1700 até a Abolição em, 1888. A etnicidade é um padrão cultural pré estabelecido pela sociedade visando a caracterização das raças humanas e a identificação dos indivíduos a partir delas. Mas ao analisarmos a história de Baquaqua, torna-se evidente que a etnicidade não pode determinar a sua auto-identificação, uma vez que a identidade de um indivíduo é personalíssima (pertence à pessoa e não à sua raça), e por sua natureza, não vem de preceitos sócio-culturais.

 “A etnicidade revela-se como uma série de chapéus, cujo uso lhe é prescrito. Como um mecanismo de auto- identificação, a etnicidade surge como uma miragem, a disfarçar o indivíduo que está sob os chapéus.” (Lovejoy,2002,p. 9).

Sendo igualados a animais domésticos e as máquinas , apenas 0,09%  da população negra era alfabetizada, o que lhes negou o direito a escrever sua história e assim sendo, por muito tempo a falta de curiosidade dos lusos-brasileiros em relação aos pensamentos e sentimentos dos mesmos, calou a voz deste povo que passa a ser objeto de interesse de  estudo dos historiadores a partir de 1970.
Em seu discurso narrado a Moore percebemos a colaboração entre o copista e o narrador,  sendo mediado pela percepção estética e ideologica do abolicionista-cristão, e nesta elaboração muitos fatos foram deixados de lado, pois havia a intenção de Mohammad publicar futuramente um texto mais completo, relatando toda sua história.
Para ele, narrar constituia gozar de uma liberdade à muito procurada e desejada, pois desde o primeiro momento em que se vê longe de sua terra, alimenta o desejo de voltar para seu ambiente conhecido, e para isso, vai vestir vários personagens, conforme o momento exige, sem nunca, porém, esquecer-se de fato, de sua antiga identidade.
Ambos, copista e narrador compartilham os fins morais da publicação, é uma autobiografia escravizada, mas concede a Baquauqua a sensação de liberdade, pois este é seu objetivo, enquanto Moore deseja sua salvação como um trabalhador livre e cristão. Por este motivo, podemos encontrar no texto a voz e o silêncio de Mohammad e as idéias de Moore costuradas, mas bem distintas.
Segundo Lovejoy, Baquaqua não diz nada a respeito de sua etcinidade nem do seu lugar de origem. Com, provavelmente trinta anos de idade quando seu livro foi publicado, ainda jovem possuia uma diversidade de experiências incomum para a maioria pessoas em qualquer época, mas descreve bem a realidade enfrentada pelos escravos conduzidos a força a um mundo desconhecido, sendo considerados com “gente sem alma” e por isso passíveis de serem moldadas ao gosto de traficantes e senhores escravistas.          Mesmo assim ele não se quebrantou, passou por mais dois colégios nos Estados Unidos dirigido pelas Missões Livres, não temos informação sobre sua formação, sabemos apenas que se tornou pregador do evangelho e abolicionista, não se calou, interagiu com a comunidade abolicionista criando uma conexão nunca vista, considerando-se que jamais se envolvera anteriormente com coisa alguma, se mostrando sempre com uma pessoa de identidade singular e saudosa.
 Mudou-se para o Canadá, se tornando um cidadão canadense, isso foi possível pelo trato afetuoso em que foi recebido naquele país, Baquaqua nunca tinha se sentido tão bem recepcionado em lugar algum.

“Fui cordialmente tratado por todas as classes aonde quer que andasse [ no Canadá], e digo de coração nunca esperei receber, numa nação tão distante da minha terra natal, tanta generosidade, atenção e humanidade. Sou grato a Deus por desfrutar as benesses da liberdade, em paz e tranqüilidade; e por estar numa terra onde “ninguém se atreve a amedrontar-me”(...)”.(Moore,Samuel ,1854, p.122).

 Sentindo-se entre amigos, a palavra “free” se fez apropriada  no seu cotidiano, trazendo serenidade  para buscar a publicação da sua narrativa, esperando que essa obra conviesse  para a  regeneração do futuro seu país.Conseguimos perceber a fala da Mohamadd mesmo com a delimitação imposta pela visão distorcida de Moore, e através dela percebermos  a realidade implicíta em seus dizeres. O certo é que teve várias identidades e não teve nenhuma, qual um planta arrancada do solo, mas suas raízes deixadas no mesmo lugar. Em sua ânsia pelo retorno fez o que tinha que fazer, muitas vezes em desespero recorre a tentativa de  suícidio.
Seu perfil nos mostra uma pessoa inconformada com a própria sorte, e até onde se encontra noticias sobre ele, de um lugar ao outro, nunca teve outro objetivo a não ser voltar, reencontrar sua mãe, de quem fala com muito carinho e saudade.
Seu caminho foi traçado da seguinte forma  segundo Lovejoy: em meados de 1840, dado a festas e bebidas, cai numa armadilha, segundo Baquaqua, tramada por invejosos de sua condição de “fé e confiança junto ao rei”,  é escravizado e vendido, trazido ao Brasil por volta de 1845, conseguindo sua liberdade em 1847 em Nova York, de acordo com os escritos de Moore. Seu livro foi publicado 1854, em Detroit, Michigam (EUA), e consiste em 65 páginas impressas , tendo a “ Prece dos Oprimidos”  ( poeta afro-americano James Whitfield) como apêndice.
Em sua biografia descreve a Àfrica, em sua realidade social naquele momento, e fala, com saudade, como se esta fosse a única forma de se sentir lá, novamente. Relata  também as terríveis atrocidades a que foi sujeito, conhecendo todo tipo de violência e humilhação.
Alberto da Costa e Silva, em seu livro “ A manilha e o libambo”(pp 110/111)  cita diversas condições em que se viam os escravos naquele tempo. Haviam os ladrões que sequestravam crianças e também qualquer um que se encontrasse distante de seu grupo e os vendiam como escravos. Haviam casos de escravização por dívidas, por desacordos, por inveja, por se cobiçar algum bem ou mesmo a mulher deste, ou mesmo por simplesmente querer excluir determinada pessoa das proximidades, esta pessoa poderia ser enganada e levada a ser escravizada. Baquaqua foi um destes.
Fica evidente sua forte personalidade, resistindo a toda imposição que lhe era feita, pelo menos internamente, já que externamente parecia se submeter as condições que a vida lhe apresentava. O detalhe de algumas vezes ter se entregado a bebida como forma de resistência e protesto as suas condições, talvez seja mais uma busca pela miragem da liberdade. Baquaqua desenvolveu seus mecanismos de resistencia , mesmo que inconscientemente o que o levava a não aceitar a escravidão , mas ao  mesmo tempo o conduzia a busca pela libertação. Dentro dessa complexicidade de pensamento, fez da narrativa a Moore seu grito a fim de ser percebido pelo mundo, e deixou um importante documento que se junta a historiografia atual e permite termos uma visão quase total da realidade que permeou os séculos escravistas.
Neste documento encontramos uma história que vem confirmar outras tantas pesquisadas e descobertas por estudiosos sobre o assunto. As guerras para gerar escravos, esta com fins tanto políticos quanto econômicos, conforme argumento de John Thornton, “ as operações militares para recolher cativos “  (SILVA, Alberto da Costa, apunt  A manilha e o libambo, pp108). Essas e outras estratégias eram repetidamente usadas para se juntar cada vez mais escravos, que serviam de braços armados nas guerras e também no cultivo da lavoura, trazendo assim, mais poder e riqueza aos senhores.
Moore, um bispo, busca justificar a partir de seu ponto de vista, a caminhada e os objetivos de Baquaqua, nos dizendo que este gostaria de retornar para evangelizar na Àfrica. Paul Lovejoy, um historiador especializado no tema, nos tras um visão mais aberta e esclarecedora do que realmente foi a realidade de um povo em determinada época. Mas o prório Baquaqua é quem realmente expõe o mais próximo da realidade, pois ele prório experimentou a sensação de não pertencer a lugar algum, tentando manter as referências que conhecia desde a infância, como se todo resto fosse sequencia de imagens onde seu corpo estava aprisionado, mas seu espiríto se mantinha livre.  Apesar de toda a sua luta, perderia sua identidade, pois mesmo que retornasse a sua terra natal, já não seria mais a mesma pessoa, e nem encontraria mais o mesmo lugar como o deixou. A escravização tem o pder de tocar fundo num ser humano, e mesmo com toda a resistencia, descortina-se diante de si um outro cenario, onde, após o contato com a peversidade humana, nenhum ser consegue se manter igual ao que foi um dia.
Não podemos saber ao certo se a narrativa de Mahammad  é fantasiosa e exagerada em alguns pontos, mas para ele tudo que narrou era real, como se soubesse que seria lido e faria com isso,  todo o mal a que foi submetido desaparecer. 
Portanto, conforme se pode constatar, a história de Baquaqua é apenas uma, dentre tantas, que nos tras a visão de como eram aqueles tempos, da influência perniciosa que a bebida, artigo de troca muito negociado naquela época no comércio escravista, e instrumento de desiquilíbrio que colaborou na desestruturação de um povo atuando como agente aliado do colonizador, e nos remete para os dias de hoje, onde ainda podemos ouvir o “eco” dos gritos dos excluídos e da inauguração do racismo, como hoje conhecemos.
Com a aprovação da  LEI 10.639/2003, assinada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 09 de janeiro de 2003, o ensino da História da África torna-se matéria obrigatória nas escolas de todo o país: 



História e Cultura Afro – Brasileira e Africana
LEI Nº. 10.639/03
09 de janeiro de 2003
• Art. 1º A Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida
dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
􀀹 Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo de
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras.
§3º VETADO
Art. 79-A VETADO
􀀹 Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia
Nacional da Consciência Negra”.
􀀹 Art.2º esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182º da Independência e 115º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque.
Esperamos desta forma que seja trazido a luz do saber comum a verdadeira importância do povo africano a formação de nossa nação, tal qual a conhecemos hoje, e que isto permita a todos os afro-descendentes conhecerem suas origens e resgaterem a identidade perdida de seus ancestrais.